Como uma bandeira chinesa de cartão de crédito revelou que o Brasil abandonou a tradição diplomática centenária, tornando-se peça-chave numa nova guerra fria financeira entre EUA e China
Enquanto o cenário político brasileiro fervilhava com o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e com a notícia explosiva da tarifa de 50% imposta por Donald Trump às exportações nacionais, um discreto anúncio comercial passou completamente desapercebido. Em meio ao ruído, uma obscura bandeira de cartão de crédito começou a avisar aos consumidores brasileiros que, no final deste ano, estaria disponível no país.
Batizada com o nome em inglês de UnionPay, a empresa não fez grandes alardes, limitando-se a tímidos comunicados divulgados em sites especializados e pequenos grupos de WhatsApp ligados ao mercado financeiro. Para olhos distraídos, parecia apenas mais uma novidade no enfadonho noticiário econômico. Mas não era. Por trás dessa discreta oferta estava um sofisticado sistema de transferência internacional chamado CIPS, controlado diretamente pelo Partido Comunista Chinês, operado exclusivamente em yuan — a moeda chinesa — e totalmente fora da influência do sistema financeiro americano.
Por trás da aparente banalidade daquela oferta escondia-se uma mudança tectônica no tabuleiro da política global: o Brasil, sem qualquer debate público ou decisão do Congresso, acabava de se tornar peça-chave numa silenciosa guerra financeira travada entre os Estados Unidos e a China, com consequências que vão muito além das tarifas de Trump ou do futuro judicial de Bolsonaro.
Imagine descobrir, de repente, que você virou peão em um tabuleiro global sem sequer perceber. É exatamente essa situação que o Brasil enfrenta agora. Enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal discutiam detalhes constitucionais no julgamento do ex-presidente, eles se tornaram, sem saber, alvos numa batalha financeira de escala global. O detalhe mais tragicômico? O Brasil nem escolheu um lado: simplesmente acordou no meio do conflito.
Tudo começou com um golpe aparentemente burocrático vindo dos Estados Unidos. O Departamento de Estado americano, liderado por Marco Rubio, cassou o visto de oito ministros do STF. Apenas Luiz Fux e os dois indicados por Bolsonaro — Kassio Nunes Marques e André Mendonça — escaparam. Mas aqui há um elemento curioso: Fux só escapou por ter contrariado Alexandre de Moraes durante o depoimento de Bolsonaro e por ter sido voto vencido na decisão que determinou prisão domiciliar e silenciamento do ex-presidente. Ao defender juridicamente Bolsonaro, Fux alinhou-se, por tabela, aos interesses americanos, assim como os ministros nomeados pelo ex-presidente. Em geopolítica, coincidências raramente existem. Enquanto isso, os demais ministros da corte se viram pressionados e encurralados pelo Departamento de Estado americano.
O próximo movimento americano poderá ser muito mais contundente, com a aplicação da Lei Magnitsky aos ministros já sancionados. Na prática, essa lei permite congelar financeiramente indivíduos, impedindo-os de usar cartões de crédito internacionais, realizar transferências bancárias, acessar contas nos EUA e até mesmo utilizar serviços como Uber, Netflix ou qualquer plataforma que processe pagamentos via Visa e Mastercard. Seria o equivalente a virar um fantasma financeiro, existindo apenas em dinheiro físico ou métodos alternativos de pagamento.
Aqui começa a ironia brasileira. Enquanto os EUA preparavam suas sanções, o Brasil tornou-se, silenciosamente e sem nenhuma discussão pública, o primeiro país da América Latina conectado diretamente ao CIPS – a alternativa chinesa ao SWIFT, sistema global que conecta os bancos para transferências internacionais. Fundado em 1973 por bancos majoritariamente americanos e europeus, o SWIFT sempre esteve sob forte influência ocidental. Em contrapartida, o CIPS realiza toda a operação financeira – desde a comunicação até a compensação e liquidação – diretamente em yuan. O país que sofrer sanções americanas poderá continuar operando, desde que aceite trocar dólares por yuan. É exatamente essa a lição que Rússia e Irã já aprenderam: o CIPS e a UnionPay são a única alternativa para países e indivíduos impedidos de operar no sistema financeiro tradicional. Eles não usam Visa nem Mastercard. Pagam com UnionPay e liquidam em yuan.
O Brasil tornou-se o laboratório dessa estratégia chinesa graças ao Banco Master, que recentemente emergiu de uma situação financeira difícil para integrar diretamente o sistema CIPS. Até teorias conspiratórias absurdas surgiram nas redes sociais, acusando o STF de se alinhar secretamente ao Partido Comunista Chinês, já que a esposa de um ministro foi contratada como advogada pelo banco envolvido.
Mas, deixando de lado essas especulações exageradas, o fato concreto é que, caso as sanções americanas realmente se concretizem, os ministros afetados terão uma alternativa prática para continuar realizando transações internacionais: usar o sistema financeiro chinês, convertendo recursos em yuan, transferindo-os via Xangai e sacando em qualquer centro financeiro onde a moeda chinesa seja aceita.
E a estratégia chinesa vai além. A UnionPay, maior operadora de cartões do mundo, com quase 9 bilhões de cartões em circulação (59% do total global), aceitos em 181 países, chega ao Brasil pela fintech Left com previsão de lançamento da função crédito até o fim de 2025.
Vamos aos números para entender o que está realmente em jogo nesta guerra coordenada. A Visa processou 234 bilhões de operações em 2024, cobrando até 0,3% sobre R$ 4 trilhões movimentados só no Brasil. A Mastercard passou dos 191 bilhões de transações. São bilhões em taxas que saem diretamente do Brasil para os EUA. A cada transação que migrará para a UnionPay, esses dólares deixarão de circular. E é exatamente aí que o Tesouro americano sente o baque. Não nos discursos inflamados de Lula sobre uma “moeda BRICS” em cúpulas internacionais, mas no fluxo real de dinheiro.
Some-se a essa guerra financeira a recente decisão do STF de restringir a liberdade das Big Techs no Brasil (outro movimento interpretado por Washington como sinal claro de uma tempestade perfeita, indicando uma decisão do establishment brasileiro de enfrentar os EUA e aproximar-se perigosamente da China). Não bastasse isso, Lula e Janja ainda tiveram recentemente um encontro civilizado com o líder chinês, onde surgiu a proposta de criar um grupo para debater limitações ao TikTok — mais um elemento que alimenta o receio americano sobre o alinhamento do Brasil.
Agora, com CIPS e UnionPay instalados, o Brasil deu mais um passo em direção à potência que pretende desafiar a hegemonia do dólar. Não houve debate no Congresso, não houve consulta pública. O Itamaraty simplesmente acordou um dia e descobriu que está trocando décadas de dependência estratégica de Washington por uma hipoteca financeira com Pequim.
Trump, é verdade, transforma aliados em vassalos e acha que o mundo é seu quintal. Merece uma reação à altura do governo brasileiro. Mas os atritos entre os dois países não se restringem ao temperamento descontrolado do presidente americano.
Ao ver o Brasil aproximar-se de Pequim com uma retórica espalhafatosa e por meio de decisões soberanas do STF que desagradam as Big Techs, os EUA concluíram que abandonamos a tradição construída desde os tempos do Barão do Rio Branco: uma diplomacia pacífica e mediadora, pautada exclusivamente pelos interesses nacionais, sem alinhamentos automáticos.
Rio Branco ensinou que alianças deveriam ser pragmáticas, momentâneas e bilaterais, e que a verdadeira força da diplomacia brasileira residia justamente na capacidade de manter-se equidistante dos conflitos entre as grandes potências, extraindo dessas disputas o máximo benefício sem nunca se tornar refém delas. É verdade também que ele teve a sorte histórica de nunca precisar enfrentar a personalidade imprevisível do presidente americano. Mas, como se vê, nem tudo se limita às decisões explosivas de Trump.