Comprei um BMW: estou desmatando a Amazônia?

Suspeita de trabalho escravo e desmatamento em fornecedores desgastam marcas

Divulgação/BMW
Divulgação/BMW

Por Odoardo Carsughi

Uma matéria recente do The Washington Post (WP) revelou um aspecto interessante sobre a complexidade do mundo em que vivemos e muitas empresas não se dão conta.

Alguns podem torcer o nariz para a fonte e dizer: ah, mas o Post é um jornal progressista, que faz este tipo de coisa para se colocar como paladino da verdade e ganhar prêmios Pulitzer. Sim, o Post já ganhou 47 vezes o Pulitzer. E é a mídia que na década de 1970 liderou as investigações do Escândalo do Watergate que ajudou em muito no processo de renúncia do então presidente Richard Nixon. Gostemos ou não, validem ou não, o WP é um player importante e respeitado na mídia mundial. Caso eu não valide o WP, há milhões de pessoas que o validam. Milhões de consumidores. Este é um ponto extremamente importante deste arrazoado que farei.

Independente destes fatos, quero, com meu artigo, demonstrar que o mundo mudou e muita gente ainda não percebeu. Isso para mim se chama a síndrome do sapo fervido.

O WP trouxe luz a uma sindicância interna do Congresso Americano sobre a cadeia de fornecimento da indústria automobilística. Essa sindicância interna está sendo liderada pelo senador democrata Ron Wyden, que preside uma comissão de finanças por lá. 

Alguns vão torcer o nariz de novo e dizer: ah, mas essa é a agenda progressista dos democratas que só quer fazer barulho e não ajuda em nada a resolver os dilemas e problemas atuais que o mundo enfrenta. Não vamos por essa linha. Essa agenda é apoiada também pelos republicanos. Talvez por diferentes razões, mas é apoiada por muitos republicanos.

Vamos apenas entender tudo isso como uma dinâmica do capitalismo de stakeholders e não mais o antigo capitalismo de shareholders. O mundo mudou, concordemos ou não. E não dá, por enquanto, para querer viver em outro mundo…

Long story short: esse senador acusa a Lear Corporation, que é uma fornecedora gigante da indústria automobilística, de não se empenhar o bastante para garantir que na cadeia de suprimentos de sua produção de bancos em couro haja respeito à legislação que proíbe trabalho análogo à escravidão e couro proveniente de gado criado em áreas desmatadas na Amazônia.

Adicionalmente, o senador acusa uma das fornecedoras de couro da Lear, a JBS, de fazer vistas grossas a gado proveniente de fazendas na Amazônia que foram desmatadas ilegalmente. Afirma também que são colocadas empresas terceiras no meio do caminho para “diluir” e “distanciar” a JBS deste problema e da responsabilidade sobre a cadeia de suprimentos. Cita o termo cattle-laundering (lavagem de gado), fazendo uma analogia ao termo money-laundering (lavagem de dinheiro), que é o tradicionalmente conhecido. 

Em tempo: a matéria do WP cita que os acusados pelo senador refutam os termos de sua denúncia integralmente. Todos dizem possuir robustos sistemas de governança que identificam estes desvios e eliminam de seu rol de fornecedores aqueles que não aderem às suas rígidas práticas de combate a trabalho análogo a escravidão, direitos humanos e proteção ao meio ambiente.

A JBS se posicionou oficialmente afirmando que “a empresa não está fechando os olhos para o desmatamento ilegal na Amazonia”, mencionando suas politicas contra trabalho forçado e desmatamento. Cita ainda que “este é um trabalho de alta prioridade para a empresa, que já resultou em bloquear quase 12.000 fazendas potencialmente suspeitas de desmatamento ilegal e violação da política de suprimentos da JBS”.  

Ok, mas como / onde / por que esta cantilena toda de ESG me afeta?

Quem me segue sabe que eu evito fazer juízo de valor em meus raciocínios. Apenas apresento fatos e dados e deixo ao leitor tirar sua conclusão. Tenho a firme convicção que o mundo mudou. No digital, o poder saiu totalmente das mãos dos fabricantes e foi em considerável intensidade parar nas mãos dos consumidores.

Quer um exemplo? A propaganda da Budweiser Light com uma mulher trans. Recebeu uma saraivada de críticas e boicote de consumidores mais conservadores. Certo ou errado não me interessa. Mas vamos nos atentar ao fato de que o consumidor agora tem muito mais poder que antes. Isso é no brainer. O poder de cancelamento nas redes sociais transformou o mundo dos negócios. Para o lado progressista e para o lado conservador. 

Ah ok, mas isso é para o B2C. Eu não vendo cerveja nem carro. Isso não afeta a minha empresa. Tem certeza?

O caso aqui citado da Lear Corporation a afeta diretamente. Ela está no B2B. Mas fornece para fabricantes de carros, que são B2C: GM, Ford, Toyota, Ram (olha a Stellantis aí no meio entrando de gaiata) e BMW. E afeta a JBS. Upstream e downstream

Alguém duvida que as montadoras que compram da Lear não vão pressioná-la para que a mesma garanta uma cadeia de fornecimento que não traga problemas de imagem?

Imagine uma campanha do Sleeping Giants assim: “Não compre carro da marca XPTO. Eles se utilizam de trabalho escravo e desmatamento nos seus carros. Me arrepia só de pensar no estrago.

Ninguém em sã consciência quer isso. No mínimo vai dar uma baita dor de cabeça e energia investidos para endereçar um caso de reputação e imagem. Principalmente em um momento onde o foco das automakers é em “defender seu queijo” da invasão chinesa com preço razoável e alta qualidade, o que está difícil, vamos ser sinceros.

Ah, mas eu não sou grande e nunca estarei no spotlight desta discussão. Tem certeza2?

Vamos lá. Sua empresa é de médio porte. Está no B2B. Mas fornece para alguém, certo? Que usa teu produto como final ou como feedstock para o próprio processo produtivo. 

Vamos pensar em algumas hipóteses razoáveis:

  1. Você quer começar a vender diretamente para um grande player. Ele está sob o spotlight e vai requerer que você siga as regras de ESG dele. Então você vai estar no spotlight1;
  2. Você quer se tornar um grande player e comprar seus concorrentes, pois seu mercado é pulverizado. Vai ficar grande. Vai para o spotlight2;
  3. Você quer dinheiro para crescer, com taxas melhores. Vai ao banco ou ao venture debt. Vai para o spotlight3;
  4. Você se cansou de brincar. Vai vender a empresa e vai para Miami curtir a vida. Quem vai comprar a empresa? No due diligence você vai para o spotlight4.

E se a casa não estiver em ordem, vai sentir na pele que ESG faz preço, sim. Faz valuation. Só que para baixo se você não conseguir demonstrar que está tudo em ordem. Isso se chama taxa de desconto por desconhecimento do risco. Ah, mas numa venda tem uma escrow account para resolver isso. Mas e se aparecer aquele esqueleto, que de tão cabeludo, bloqueia a escrow e pode ser um deal breaker? (aqui agradeço meu amigo Luiz Fellipe Arcalá pela lembrança deste ponto!). 

Qual a conclusão de tudo isso?

O mundo mudou. Sem juízo de valores, a dinâmica da sociedade está diferente. Concorde você ou não. Estamos em um mundo capitalista, onde a regra do jogo é consumo. Quem consome são pessoas. E elas estão moldando um mundo diferente. Empresas querem maximizar lucro e valuation. Então elas se adequam ao gosto do freguês. Simples assim.

Voltando a uma citação do início do artigo: a síndrome do sapo fervido. A água está esquentando. Quem não perceber e não se adaptar, vai morrer. Um tal de Darwin já disse isso há algum tempo. E está mais atual do que nunca!

Invista em ESG. Invista em Governança primeiro. Sem o “G” não adianta fazer o “S” tampouco o “E”. A tríade fica desequilibrada. 

Caso você queira se aprofundar em como estruturar uma governança robusta na sua empresa, confira o artigo que escrevi recentemente sobre o tema.

Boa semana a todos!