Trajetória do ajuste fiscal é mais importante que intensidade, diz Ceron, do Tesouro

Nova proposta pode garantir que país caminhe para estabilizar dívida pública

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Por: Lucinda Pinto, Felipe Corleta, Sheyla Santos e Simone Kafruni

O plano de voo do governo considera que, com o arcabouço fiscal e a retomada do crescimento, o Brasil pode, por meio do reforço do investimento público, voltar à classificação de grau de investimento em 2026 – ou, pelo menos, estar preparado para recuperar este selo, perdido em 2015, durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff. Para o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, a proposta do novo conjunto de regras fiscais garante que o país caminhe para estabilizar a dívida pública ao longo do tempo de forma estável e menos sujeita aos ciclos econômicos e políticos. Isso, junto com políticas sociais e medidas que tragam de volta a formação bruta de capital fixo, deve abrir caminho para a melhora da classificação de risco do país.

Em entrevista exclusiva à Mover, Ceron reconheceu haver no mercado divergências nas projeções para a trajetória da dívida pública a partir das regras propostas. Porém, para ele, mais importante do que a intensidade do ajuste é garantir a trajetória da dívida ao longo do tempo.

“Se a relação receita e despesa não for quebrada, a situação fiscal vai se resolvendo, e o mercado concorda com isso. A discussão sobre se vai estabilizar em 2027, 2028 ou em 2029, é bobagem”, afirmou.

“A gente quer fazer um processo de ajuste mais intenso, e a gente acha que dá. Se não conseguir, vai ter um processo de convergência um pouco mais lento. Mas o mais importante é que a gente vá melhorando.”

Segundo Ceron, a maior previsibilidade trazida pela regra – que pode ser a nova “Lei de Responsabilidade Fiscal, em sua visão – tem ampliado o apetite do investidor estrangeiro pelo país, o que se refletiu na recente captação de US$ 2,25 bilhões por meio da emissão de bonds no exterior, e também pelo aumento da participação de não-residentes nos leilões de títulos públicos. “Acho que o mercado todo reconhece que há mais apetite pelo Brasil”, afirmou.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Mover: Há muita expectativa sobre o efeito do arcabouço fiscal sobre a política monetária. E sobre a gestão da dívida, de que forma a proposta está repercutindo?

Rogério Ceron: A gente percebe o aumento do apetite do investidor estrangeiro. A gente fez a emissão externa [de US$2,25 bilhões, em operação concluída em abril), que não é tão importante para a estratégia de refinanciamento, mas é para ‘marcar a curva’. A operação foi boa também para evidenciar essa percepção de atratividade do Brasil para o estrangeiro. Tivemos quatro vezes a demanda em relação ao que ofertamos. Outra boa sinalização foi a qualidade dos investidores que buscaram os títulos, que também chamou a atenção. São investidores que entram em países com rating até melhor do que o do Brasil. Mas é um consenso que, em termos relativos, o Brasil está melhor do que outros emergentes, e acaba sendo um destaque dentro do orçamento que existe para a alocação nesses países.


Mover: Por causa dos juros mais altos?

Ceron: Não, por uma questão de equilíbrio. A Rússia, a Turquia e outros países da América Latina são super confusos. Para o gestor externo, a discussão sobre se nosso déficit externo vai ser de 1,5% ou 2% do PIB [Produto Interno Bruto] não é uma grande questão, a maior parte dos países está em uma situação também desafiadora. Acho que olham para uma questão de estabilidade política. A emissão externa e a presença do investidor estrangeiro nos leilões de títulos domésticos de mais longo prazo sinalizam um apetite do estrangeiro pelo Brasil. Pode melhorar, nossa intenção é recuperar a presença do não residente, que já foi de 20% e hoje é de quase 10%, o que é importante para a composição e redução do custo da rolagem da dívida. A estratégia é ir passo a passo, trazendo mais previsibilidade, mais estabilidade fiscal, e atrair esse investidor de volta. Acho que o mercado todo reconhece que há mais apetite pelo Brasil.

Mover: Embora o mercado tenha reagido bem à divulgação do texto do arcabouço, inclusive com alívio na curva de juros, ainda há muitas dúvidas sobre o quanto será possível realizar dos objetivos de superávit e de arrecadação.

Ceron: Eu fico muito feliz que a discussão do arcabouço esteja sendo em torno da intensidade, e não da direção. O cerne do arcabouço é que as despesas só podem crescer menos do que a receita. Não consigo fazer grandes movimentos, nem para cima, nem para baixo. Fica um pouquinho menos pró-cíclico. A relação receita e despesa vai melhorar ano a ano e isso é mais importante do que a intensidade do movimento. Ou seja, eu trago mais previsibilidade em um movimento mais gradual no tempo e permito que se lide melhor com os ciclos econômicos e políticos. Essa é a essência do arcabouço e o que, no meu entendimento técnico, vai garantir que ela seja uma nova LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] e vai permanecer nos próximos 20, 30 anos. A regra fiscal tem alguma flexibilidade. Se a relação receita e despesa não for quebrada, a situação fiscal vai se resolvendo, e o mercado concorda com isso. A discussão sobre se vai estabilizar em 2027, 2028 ou em 2029, é bobagem. Todo mundo tem uma simulação para chamar de sua. O importante são o médio e o longo prazo. Lógico que o mercado vive de ansiedade e quer uma simulação para amanhã, mas olhando o Brasil, criar esse horizonte de mais longo prazo é o que realmente importa como legado.

Mover: O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, falou, na semana passada, que um marco fiscal baseado em corte de despesas teria eficácia maior para combater a inflação do que uma regra que aumente a arrecadação. O senhor concorda com isso?

Ceron: Eu não gosto muito de entrar nesse debate. Do mesmo jeito que eu não gosto de opinar sobre política monetária, eu não gosto que alguém da política monetária fale como deveria ser a política fiscal. Cada um cuida daquilo que lhe foi atribuído. Mas, geralmente, quem faz essa comunicação, de que o ajuste precisa ser por parte do gasto, tem de levar em conta que o gasto do Estado, as grandes rubricas, são transferências de benefícios previdenciários, extremamente concentrados no salário mínimo, benefícios sociais, educação pública e saúde pública. A máquina pública pode ser mais eficiente, e tem que ser mais eficiente, mas ela custa R$50 bilhões.Você não vai arrumar nada com R$50 bilhões, não resolve um quarto do déficit para o ano. Quando uma pessoa fala isso, ela está defendendo um Estado que seja mais liberal, que não tente corrigir eventuais distorções sociais que existem no país e cada um que se vire. É uma visão de mundo. Não tem nada a ver com responsabilidade fiscal. O governo eleito quer entregar reparação social, melhorar a educação e apoiar a redução da desigualdade, com responsabilidade fiscal. É uma escolha. Se tirar todas as políticas públicas e deixar as pessoas pobres morrerem nas ruas, sem educação pública, talvez você tenha um grande superávit, uma taxa de juros menor, um PIB melhor. Mas este governo, pelo menos, não foi eleito com essa visão de mundo.

Mover: Uma crítica feita é que o arcabouço não prevê uma punição, como previa a Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso não fragiliza a perenidade da medida?

Ceron: Essa é uma outra crítica que eu gosto de rebater. Primeiro que o mundo inteiro não caminhou para isso, caminhou para a questão da indução de conduta. Segundo, a memória do brasileiro é muito curta. Como se essa regra fosse algo que cumpriu algum papel no Brasil. O que acontece quando a regra coloca uma punição grave? Você manipula. Olha as metas de primário dos últimos anos. Todas com déficits gigantescos, com muita folga, que você não tem o risco de descumprir. Ela [a regra] fica absolutamente inócua. Você não força o gestor público a definir uma meta ousada. Estamos colocando uma meta desafiadora de primário. Se descumprir, ok, vai ter suas consequências, mas eu deixo o gestor buscar algo real. É melhor colocar incentivos e desincentivos, punir governos e não tentar punir pessoas. Acontecem duas coisas quando você tem esse tipo de regra: ou você manipula para não ter folga ou, se está ameaçando quebrar, você muda a meta. O Brasil fez isso sistematicamente. O cerne, é: eu vou garantir que não se possa quebrar essa diferença de receita e despesa, amarrando receita, despesa e resultado, mas com alguma flexibilidade para não deixar o gestor público tentado a quebrar a regra do jogo. Hoje a gente vive nos extremos, ou você descontrola o gasto ou tenta fazer uma coisa absolutamente impossível e em todas as vezes você quebra a regra do jogo dos dois lados. Um pouco mais de equilíbrio é o que eu defendo.

Mover: No Congresso, um dos pontos mais questionados é que o arcabouço não criminaliza o descumprimento da meta fiscal.

Ceron: É óbvio que é natural que as pessoas queiram opinar e é legítimo que o façam. Só que é uma discussão de curto prazo. E o que importa para nós é o médio prazo. É um justo debate sobre reduzir o limite de gasto de 50% [quando a meta fiscal for frustrada]. Mas não sobre a criminalização, porque isso o Brasil nunca fez. Não estou avaliando se a regra anterior era boa ou não, mas sempre deu errado. Eu já ouvi que é melhor blefar um pouquinho. Eu me recuso a fazer isso. Não vou blefar. Com a meta de resultado primário, a gente não está enganando ninguém. O que é melhor para o país, colocar uma meta desafiadora e atingir 70% dessa meta ou colocar uma meta manipulada, que pode ser atingida sem qualquer esforço, que entregue um resultado muito abaixo do que seria a meta ousada? Vamos deixar o gestor ser ousado e tentar buscar algo melhor? É isso que a gente está discutindo, é isso que a gente defende. Mas, claro, é o Congresso que vai decidir.

Mover: Há algo dentro dessa proposta que o senhor considera que vá sofrer mais resistência no Congresso?

Ceron: É cedo ainda. O Congresso está começando a tomar pé. Acho que tem uma preocupação com a sustentabilidade e trajetória da dívida, que acho que é legítima, mas é cedo ainda. O que eu vejo é uma preocupação legítima de que a regra seja crível e que vá resolver o problema ao longo do tempo. Isso acho que o Congresso está bem alinhado nesse sentido.

Mover: O senhor acha que vai ser um debate tranquilo convencer o Congresso de que as medidas saneadoras não são aumento de carga tributária?

Ceron: Essa discussão é boa. É sobre gasto tributário. O que a sociedade quer? Mais salário mínimo ou renúncia tributária para cinco grupos empresariais? As duas grandes distorções tributárias que temos em discussão são: triangulação com paraíso fiscal para evitar tributação sobre resultados e utilização de benefícios fiscais de ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] para evitar tributação sobre lucro. Ambos são sobre resultados. Não estou tributando faturamento. Quando eu permito ou deixo brechas, eu estou criando uma concorrência desleal. Isso precisa ser discutido. A sociedade pode discordar, ter menos salário mínimo e privilegiar alguns grupos. É uma decisão social, mas isso não está à luz do sol. A sociedade não está vendo. Quem representa a sociedade é o Congresso Nacional, e as discussões estão sendo feitas. Queremos um contencioso tributário de dez anos, que sirva de estratégia de não-pagamento de tributos, ou queremos algo mais consistente? São escolhas. Se não conseguir, quer dizer que a sociedade decidiu que não é o momento de enfrentar aquela questão, não está madura para dar aquele passo. Se eu reduzir o gasto tributário, eu consigo criar uma sociedade mais equilibrada. Qual é o custo-Brasil da violência, da desigualdade social? A gente acredita que dá para ter um equilíbrio e está fácil. Não preciso criar nenhum tributo novo, só corrigir o que o patrimonialismo brasileiro criou ao longo do tempo.

Mover: O que é preciso para o Brasil retomar o grau de investimento?

Ceron: O primeiro passo é trazer a estabilidade fiscal, que vem com o arcabouço, para mostrar uma trajetória mais estável ao longo do tempo. Eu acredito que é mais importante a trajetória do que o patamar dela. Tem muita gente que tem grau de investimento mesmo em condições parecidas com a do Brasil. Ou piores. O outro item é a retomada de investimento público, porque você precisa voltar a ter crescimento. A formação bruta de capital fixo precisa ser incrementada. Como a gente faz isso? Estimulando investimento privado – e aqui a estabilidade fiscal ajuda – com regras mais claras que vão trazer mais segurança para o investidor, protegê-lo de fraudes. Nós acreditamos muito no sistema de parcerias público-privadas (PPPs) para alavancar investimento público. Não só porque alavanca os investimentos quando você não tem tanto espaço fiscal e você traz o privado, mas também por ter um modelo mais moderno de gestão daquela infraestrutura. Quando você faz um investimento já com o modelo de gestão para os próximos 20 anos, ele se preocupa muito mais com a qualidade. Você transfere o risco. Estamos trabalhando o modelo de garantias para poder alavancar as PPPs da União também. Quanto mais crescimento, melhor o ambiente. Não é difícil. O crescimento do país nos últimos 30 anos é de 2,5%. Nós temos que voltar para 2,5%, que não é excepcional. Temos também que formar melhor nossos recursos humanos, com incremento grande de recursos para a educação. A política social importa para as agências de rating, assim como crescimento econômico, fiscal e reformas estruturais. Dá para chegar lá com grau de investimento? Se tudo der certo, dá. Se não atingiu o grau de investimento em 2026, mas se estou a um degrau dele, criando condições para que no ano seguinte alguém dê esse passo, ótimo. O plano de voo é factível.

Mover: Como conviver com uma dívida tão alta?

Ceron: Vamos fazer o que o mais liberal dos economistas defenderia, que é combater gastos tributários, que só gera distorções. Se a sociedade validar isso, a sociedade toda pagará menos juros, terá uma dívida pública menor e, obviamente, sobrará mais espaço para fazer outras coisas. Se a sociedade decidir que não dá para fazer isso, está optando por pagar mais juros. O importante é ter essa consciência de que não existe almoço grátis. Não dá para ter uma distorção como essa e não ter uma consequência. A votação do STJ [Superior Tribunal de Justiça] sobre tese tributária foi um grande sinal. Todo mundo falava que não tinha apoio do Judiciário. Eles julgaram por unanimidade, o que é raro acontecer. E o governo saiu vitorioso por estar defendendo o correto. É uma discussão à luz do sol. A questão da dívida pública é a intensidade. A gente quer fazer um processo de ajuste mais intenso, e a gente acha que dá. Se não conseguir, vai ter um processo de convergência um pouco mais lento. Mas o mais importante é que a gente vá melhorando. Andar para frente é o que o país mais precisa. Claro, também gostaria que a dívida fosse menor, porque isso ajuda a atrair o não-residente, ajuda muito a composição da dívida, descola um pouco a política monetária do financiamento da dívida pública, o que seria saudável. Senão fica uma contaminação que é ruim para todo mundo. É ruim para a política monetária, e é ruim para a política fiscal, porque um ciclo de aperto monetário impacta muito a gestão da dívida. Claro que a gente queria ter um custo menor de dívida fiscal. Precisamos começar a descolar as coisas, como acontece em países saudáveis. A gente já está com um cenário de dívida pública sem problemas. Claro que gostaríamos que o custo fosse menor, mas estamos trabalhando para isso, todas essas medidas ajudam.