Por Marcio Aith e Bruno Andrade
“O aumento da inflação está associado ao aumento dos níveis de pobreza. Temos visto isso recentemente em países como Argentina e Turquia”, disse o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em entrevista exclusiva ao Faria Lima Journal (FLJ) nesta quinta-feira (11).
A fala acontece em meio aos questionamentos sobre o atual patamar da taxa básica de juros da economia brasileira, a Selic, que está em 13,75% ao ano.
Além disso, ele comenta que o BC olha “uma série de conjuntos” para fazer suas projeções de inflação, e assim, entender qual é a Selic ideal para conter a alta de preços.
“A análise técnica desse amplo conjunto de informações e dos modelos nos leva a concluir que a manutenção da Selic no patamar atual é compatível com a estratégia de convergência da inflação para o redor da meta ao longo do horizonte relevante, que inclui o ano de 2024”, disse Campos Neto.
Essa é a segunda reportagem com a entrevista. Para ler a primeira parte clique aqui.
Veja a entrevista:
FLJ – O BC, ao manter uma taxa de juros real alta por um tempo prolongado, pode comprometer o crescimento econômico? Como compatibilizar controle da inflação e crescimento econômico?
Roberto Campos Neto– Nesse tema da compatibilização do controle da inflação com o crescimento da economia, é crucial entender que a mais importante contribuição que o BC pode dar ao crescimento é manter um ambiente com inflação baixa e estável. Não existe crescimento econômico sustentável com inflação elevada. A inflação alta gera incertezas importantes na economia, que desestimulam o investimento e o crescimento econômico. Com uma inflação sob controle, indivíduos e firmas podem fazer um melhor planejamento e tomar decisões econômicas mais acertadas, e isso contribui para o crescimento. Portanto, os objetivos de controle da inflação e crescimento econômico são plenamente compatíveis.
Além disso, a inflação corrói o salário real, afetando particularmente a população de baixa renda, que tem menos condições de se proteger dos efeitos de uma inflação alta. As evidências mostram que o aumento da inflação está associado ao aumento dos níveis de pobreza. Temos visto isso recentemente em países como Argentina e Turquia.
Por fim, é importante destacar que o BC se preocupa com o crescimento da economia em suas decisões de política monetária. Eu já mencionei algumas vezes recentemente que se o BC buscasse, a qualquer custo, trazer a inflação para a meta em 2023, a taxa Selic teria que ser bem mais elevada. Não foi isso que o BC fez. Isso significa que as decisões do BC também levam em conta a suavização das flutuações do nível de atividade econômica e o fomento do pleno emprego, em linha com o mandato estabelecido na sua Lei de Autonomia.
FLJ – Muitos políticos, investidores e profissionais do mercado financeiro têm criticado o BC pelo nível de juros que vem sendo mantidos. Pensando em nosso público, didaticamente, qual conta as pessoas deveriam fazer para entender o motivo pelo qual a Selic está no patamar atual?
Roberto Campos Neto – É importante ressaltar que o BC leva em conta um conjunto amplo de informações e diversos modelos para avaliar a transmissão da política monetária e fazer projeções da inflação. Dentre as variáveis, destacam-se a inflação corrente, hiato do produto e expectativas de inflação. A análise técnica desse amplo conjunto de informações e dos modelos nos leva a concluir que a manutenção da Selic no patamar atual é compatível com a estratégia de convergência da inflação para o redor da meta ao longo do horizonte relevante, que inclui o ano de 2024.
No último Relatório de Inflação trouxemos um boxe bastante interessante que detalha o sistema de análise e projeções que utilizamos. Nele enfatizamos como as projeções de inflação e a decisão de política monetária são resultado de um amplo processo que envolve: análise de conjuntura, utilização de modelos macroeconômicos, construção de cenários e avaliação sobre o estado corrente e perspectivas da economia.
Tenho sempre enfatizado que o custo do combate à inflação é alto e é sentido no curto prazo. No entanto, o custo de não combater a inflação é ainda maior, e é sentido a médio e longo prazo.
FLJ – O senhor acredita que o Real Digital será viável a curto prazo?
Roberto Campos Neto– As discussões sobre a possível emissão de uma moeda digital pelo BC começaram em agosto de 2020, o que levou à criação das diretrizes do Real Digital em maio de 2021. Desde então, o BC tem acompanhado de perto a tendência crescente do uso de transações financeiras em ecossistemas de tecnologia de registro distribuído (Distributed Ledger Tecnology – DLT) na economia brasileira.
Recentemente, em fevereiro de 2023, o BC revisou as diretrizes do Real Digital e, em março, começou o projeto piloto do Real Digital (Piloto RD). O BC estabeleceu regras e procedimentos para o funcionamento do Piloto RD e criou o Comitê Executivo de Gestão (CEG), com atribuições específicas para a governança e execução dos trabalhos do Piloto RD.
Entre 2 e 12 de maio de 2023, o CEG recebeu as propostas de entidades interessadas em participar do Piloto RD. Vários tipos de instituições autorizadas pelo BC puderam se inscrever, mas, por questões operacionais, apenas 10 entidades participarão do Piloto RD.
A fim de minimizar a complexidade do sistema de testes e manter o foco nos principais ganhos permitidos pela tecnologia, o Piloto RD utilizará uma plataforma com base em DLT, suportando registro de ativos de naturezas distintas (multiativo), bem como transações entre eles.
Para esse piloto serão empregados os seguintes ativos: (i) moeda de banco central oriunda: de contas Reservas Bancárias, de Contas de Liquidação e da Conta Única do Tesouro Nacional; (ii) depósitos bancários à vista; (iii) moeda eletrônica; e (iv) Títulos Públicos Federais.
Se tudo correr como planejado, a CBDC brasileira poderá estar em funcionamento a partir do final de 2024.
FLJ – A lei de autonomia do BC coloca como meta prioritária da autarquia o controle da inflação. Você acredita que isso deveria ser revisto, e o BC também deveria se preocupar com a geração de emprego na mesma proporção que o Fed se preocupa com o assunto?
Roberto Campos Neto– No Brasil, a Lei de Autonomia do BC (LC 179/2021) estabelece formalmente um mandato hierárquico para a instituição, com: (i) um objetivo principal de manter a estabilidade de preços; (ii) objetivos secundários de zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.
Esse arcabouço está em linha com muitos bancos centrais no mundo que adotam objetivos múltiplos, tendo a inflação como objetivo principal, e outros objetivos como secundários (por exemplo, o Banco Central Europeu).
Nos Estados Unidos, o Fed formalmente tem um mandato dual, buscando a estabilidade de preços e a maximização do emprego. Porém, o próprio Fed interpreta o seu mandato indicando que uma inflação baixa e estável é a forma mais consistente de alcançar as duas partes de seu mandato dual.
Ou seja, apesar da distinção do mandato em termos formais, na prática não há essa diferença. Tanto o BC como o Fed atuam de forma similar, priorizando a estabilidade de preços como a melhor forma de cumprir seus mandatos.
Isso também é consistente com o mandato de maximização de emprego, pois é mantendo a inflação sob controle que os trabalhadores conseguem que seu poder de compra permaneça estável, e os empresários tenham um horizonte de planejamento de longo prazo em que possam investir, fazer o país crescer e gerar mais emprego.