No STF, uma sessão solene, simbólica e histórica

Abertura do ano judiciário servirá de mensagem em defesa da democracia

Estadão Conteúdo
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No Supremo Tribunal Federal, o primeiro dia útil de fevereiro é reservado para a sessão solene de abertura do ano judiciário. Tornou-se uma tradição no calendário judicial e político, não raro contando com a presença dos presidentes dos Três Poderes.

Este ano será diferente. A sessão solene será realizada como de praxe, mas com uma sensação diferente. Será solene e repleta de simbolismo.

O edifício sede do STF foi o prédio público mais violentamente depredado no dia 8de janeiro de 2023. Vândalos ensandecidos deixaram um rastro de destruição inimaginável nos seus três andares.

Mesmo diante da barbárie praticada naquele fatídico domingo, alguns políticos e parte da mídia tentam jogar sobre o STF a responsabilidade pela violência dos ataques, acusando o Tribunal de ter esticado a corda com as investigações conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes. A consequência (abertura de inquéritos) dos atos de violência praticados por anos contra o Tribunal tornou-se, na cabeça dos radicais, a causa da destruição do patrimônio público.

Para entender o que quero dizer é preciso voltarmos a memória para a presidência do ministro Ricardo Lewandowski, entre os anos de 2014 a 2016. Foi nesse período que tivemos os primeiros registros de ataques verbais contra ministros do STF, nos saguões de aeroportos, dentro de aviões ou nas ruas. Estimulados por integrantes da força tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal, indivíduos partiam para a cobrança pública (filmada e postada em redes sociais) dos ministros do STF a favor das condenações impostas pelo então juiz Sérgio Moro a políticos e empresários.

Os primeiros ofícios encaminhados pelo STF à Polícia Federal cobrando investigação contra os agressores são desse período inicial, mas eram ignorados ou retornavam com a justificativa de que era necessária a representação pessoal do agredido (ou seja, tratavam apenas como uma questão individual do ministro agredido, não de um ataque institucional).

É verdade que naquele momento não se tinha a menor ideia de que a humilhação de ministros do STF cresceria para o ocorreu em janeiro de 2023, ao contrário. Havia uma defesa majoritária desses incidentes, pois seria mero exercício do direito do cidadão de cobrar as autoridades numa democracia. Para se alcançar um bem maior(a limpeza do país por meio da Lava Jato), racionalizava-se a irracionalidade.

O cenário de execração pública foi se avolumando nos anos subsequentes. A partir de setembro de 2016 eu pude acompanhar de perto, pois foi quando assumi a direção-geral da Corte (início da presidência da ministra Cármen Lúcia). Nenhuma investigação foi aberta ou levada adiante, seja pela Polícia Federal ou pelo Ministério Público Federal.

Muitas pessoas se regozijavam com as cenas e achavam graça quando um néscio começou a se autopromover com tomataços contra órgãos públicos e autoridades. A Lava Jato continuava sendo o principal mote para a legitimação das agressões: era preciso colocar medo nos ministros para evitar que as condenações fosse reformadas.

Os integrantes da força tarefa sabia usar as redes sociais para praticar a política do dog whistle, jogando as massas contra as instituições em Brasília. Mas, já não éramos únicos. Radicais ideológicos começavam a tomar a frente nessa campanha contra as instituições.

Diante da ausência de qualquer investigação e estimulados por lideranças políticas, os ataques apenas aumentariam e se diversificariam. Se não foi um ataque, também não fortaleceu o STF a inesquecível postagem do então Comandante do Exército às vésperas do julgamento de um habeas corpus de Lula no STF no primeiro semestre de 2018, o que foi encarado como uma indevida pressão sobre os ministros para votarem a favor da Lava Jato.

A queda da Operação só viria a ocorrer dali a algum tempo (após a descoberta da troca de mensagens entre o líder da força tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, e o então juiz Sérgio Moro), mas o extremismo de direita passou a assumir o papel de trolls contra as instituições, o que coincidiu com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República. Com a posse de Bolsonaro na presidência as agressões passaram a ter o apoio, quando não explícito, velado, enigmático ou subentendido do Palácio do Planalto.

Então, as coisas começaram a tomar proporções perigosas e que precisavam de uma resposta, ou seriam irreversíveis. Foi em resposta a mais um ataque feito por um membro da força tarefa da Lava Jato que, em março de 2019, o ministro Dias Toffoli, na presidência do STF, determinou a abertura de inquérito para investigar ameaças à Corte. Foi um divisor de águas.

Embora objeto de muitas críticas, com o tempo o inquérito aberto foi ganhando novos defensores, tanto na política quanto na imprensa, ao perceberem que a sua só existência criava uma camada extra de proteção da democracia. Percebeu-se que não era mais possível apenas esperar que a Procuradoria-Geral da República exercesse o seu papel institucional, pois havia claro conflito de interesse dos titulares do cargo, seja por alinhamento ao comportamento dos integrantes da Lava Jato ou por não quererem se indispor com o presidente da República e seus aliados mais próximos.

O tempo ia passando e os radicais foram perdendo o medo dos inquéritos.

Com a chegada da COVID-19, a radicalização contra o STF se tornou visceral, pois este acabou se tornando a principal instituição utilizada pela política para superar as atitudes erráticas que o Governo Federal tinha no enfrentamento da pandemia.

Embora mantida prerrogativa do Governo Federal de liderar o enfrentamento daCOVID-19 (ao contrário do que prega o bolsonarismo), não deixou que a deliberada recusa do presidente da República em liderar atrapalhasse as iniciativas estaduais e municipais voltadas para conter o avanço da doença.

Presenciei, no período de 2018 e 2020, muitas manifestações bolsonaristas contra o Tribunal, todas devidamente controladas pela Polícia Militar do DF, com a qual sempre houve um ótimo relacionamento. A mais agressiva manifestação até então foi a realizada entre a noite do dia 13 e a madrugada do dia 14 de junho de 2020, quando foram lançados fogos de artifício na direção do edifício sede do STF (e que teve como consequência a queda do então ministro da Educação por ter estimulado os agressores).

Já sob a presidência do Ministro Luiz Fux, o Supremo passou pelas mais graves tentativas de invasão, nas comemorações de 7 de setembro dos anos de 2021 e 2022,com apoio mais explícito do presidente da República à sua base de radicais (embora sempre recuando no dia seguinte).

Quem, portanto, estava esticando a corda? Tal qual o filho que sempre provoca o irmão e depois reclama de ser perseguido pelos pais, os grupos radicais provocaram incessantemente o caos, mas reclamam ao sofrerem as consequências por seus atos. Foram várias as oportunidades nas quais extremistas tentaram ir além da mera manifestação pacífica.

Todas foram devidamente rechaçadas pelas forças de segurança existentes no Distrito Federal, após muitas reuniões de planejamento que envolviam todos os representantes dos prédios localizados na Praça dos Três Poderes.

Por isso foi difícil aceitar o que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023, pois a experiência dizia que, se tivesse sido bem planejado, como nas oportunidades anteriores, não haveria a menor possibilidade de acontecer o que ocorreu.

A sessão solene de abertura do ano judiciário que se realizará hoje no Supremo Tribunal Federal era para ser apenas mais uma dentro do ciclo de renovação anual de atividades, não fosse pelo ocorrido em janeiro.

O que assistiremos será uma mensagem ao Brasil e ao mundo da resiliência de nossas instituições democráticas, em especial do Supremo Tribunal Federal. Em 23 dias, o STF reergueu o seu plenário sob a supervisão obstinada de sua presidente, a ministra Rosa Weber, com apoio incondicional de seus pares.

Se, durante os primeiros dias após a tragédia, o plenário do Supremo serviu para demonstrar a governadores, ministros de Estado, parlamentares, jornalistas e representantes da sociedade civil o horror a que estamos sujeitos caso a Democracia não prevaleça, neste dia 1º de fevereiro de 2023 servirá para tornar inquestionável a nossa capacidade de superar nossas piores dificuldades.

*O conteúdo da coluna é de responsabilidade do colunista e não reflete o posicionamento do FLJ