Por Bruno Andrade
A guerra na Ucrânia não se resume a apenas batalhas travadas por cada cidade ou cada centímetro de terra. Estratégia e acordos internacionais também fazem parte dessa história. O mais recente e acalorado debate é o acordo sobre os grãos ucranianos.
O presidente russo, Vladimir Putin, se reuniu com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, para chegar a um acordo sobre as exportações ucranianas.
Moscou abandonou o acordo que permitia aos navios ucranianos contornar o bloqueio russo aos portos ucranianos no Mar Negro e navegar com segurança pela hidrovia até o Estreito de Bósforo, na Turquia, para alcançar os mercados globais.
Com isso, Putin tem sido acusado de causar fome nos países mais pobres, visto que sem os grãos ucranianos, os preços dos alimentos sobem em todo o mundo e ficam escassos para quem tiver menos poder de barganha.
A invasão russa ao território ucraniano é motivada por esse grande potencial agrícola do país – o país tem um dos dois terrenos mais férteis do mundo. A região, sempre farta, gerou interesse de países poderosos sobre o domínio do seu território.
O país foi fortemente disputado na guerra entre a Polônia e a então União Soviética (1918 a 1921). Em 1922, o território passou a ser chamado de República Socialista Soviética da Ucrânia. A riqueza em matérias primas, como o carvão mineral, e a fartura fizeram Stalin adotar medidas duras contra o país, que já tinha um forte sentimento nacionalista.
Entre os anos de 1930 e 1933, Stalin fez como Putin, usou seu poder sobre o território ucraniano para causar fome. Putin faz isso no século XXI com a quebra do acordo, impossibilitando as exportações ucranianas e gerando inflação na Europa e fome na África. O líder russo faz essa jogada econômica em resposta às sanções econômicas do ocidente à Moscou após os ataques a Kiev.
Stalin usou a mesma arma de Putin para aniquilar os ucranianos. O governo soviético confiscou a produção dos ucranianos. A situação ficou crítica entre os anos de 1932 e 1933, quando os camponeses ucranianos tiveram que entregar os grãos de sua própria subsistência para o governo. A fome se alastrou e milhões de pessoas morreram. O caso ficou mundialmente conhecido como Holodomor.
É claro que sempre há aquele discurso enviesado de cada lado. Autoridades ucranianas consideram a atrocidade de Stalin um genocídio (o que eu também considero). No entanto, o número de vítimas é incerto. A Ucrânia diz que o Holodomor foi um sucesso para Stalin. O ato de confiscar a comida dos camponeses causou 12 milhões de mortos, a grande maioria das vítimas nutria o sentimento nacionalista ucraniano.
A historiografia da antiga União Soviética admite que o evento realmente ocorreu. No entanto, diz não ter sido deliberado. Teria acontecido por questões climáticas, que obrigaram Moscou a reter uma contribuição maior de grãos vinda de Kiev, pois o resto da produção agrária do país tinha ido muito mal. Na conta dos russos, morreram “somente” 1,8 milhão de ucranianos, e o número de 12 milhões é um “mero exagero” de Kiev.
Justamente por causa dessa política genocida de Stalin, os ucranianos passaram a apoiar a invasão nazista na União Soviética. Para eles, qualquer coisa seria melhor que o terror de Stalin.
Foi aí que eles se enganaram.
A Alemanha Nazista tomou Kiev em 1941 e colocou os ucranianos sob trabalho forçado. Hitler não quis alimentar nenhuma boca ucraniana. O país se encontrou novamente abaixo de um novo reinado de terror.
Esse apoio desesperado de Kiev a Hitler, sem a contextualização da perseguição stalianista, foi a memória distorcida utilizada por Putin para justificar a sua invasão à Ucrânia. “Vamos desnazificar a Ucrânia”, afirmou Putin em fevereiro de 2022. É assim que líderes demagógicos montam o seu discurso. Basta pegar uma informação descontextualizada e recheá-la do seu cunho ideológico.
Obviamente quando o ucraniano olha para o seu passado e enxerga essa relação tóxica, assassina e cruel de Moscou com o seu país, ele acaba querendo encontrar outros parceiros. O problema é que esses potenciais novos parceiros geralmente são tão ordinários quanto os russos.
O país que oferece armas ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, já criou falsas acusações contra o Iraque em 2004 só para invadir o país. A tese era que o país de Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, o que foi comprovado como falso pela ONU. Mesmo assim, os EUA invadiram o Iraque e, em 2006, Hussein foi condenado à morte por enforcamento por um tribunal local comandado como uma marionete por Washington.
Enquanto Putin bloqueia navios ucranianos, os EUA mantêm seu embargo contra Cuba. Os estadunidenses justificam que o país da América Latina é uma ditadura, mas não vemos os EUA terem o mesmo discurso pró-democracia quando falamos da Turquia, um aliado americano na Otan. O que se vê é uma indignação hipócrita e seletiva. Uma coisa fica claro nessa guerra do leste europeu: a crueldade de Moscou arremessa Kiev direto para as garras do imperialismo americano.