Entrevista - Criticas de Lula têm algum embasamento e mercado de energia exige reforma, diz ex-Banco Mundial

Criticas de Lula têm embasamento e mercado de energia exige reforma

Agência Brasil
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Consultor Luiz Maurer sugere ao governo avaliação cuidadosa de subsídios cruzados na conta de luz

Após críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) às regras do chamado mercado livre de energia, um ambiente de atacado onde indústrias negociam o suprimento de eletricidade, o ex-presidente da Associação dos Comercializadores de Energia Luiz Maurer, que foi consultor do Banco Mundial e gerente do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico (RE-SEB), disse que há algum embasamento nas falas do presidente e sugeriu que a legislação setorial precisa passar por uma importante revisão.

Confira abaixo a íntegra da entrevista de Maurer ao Faria Lima Journal.

FLJ – O presidente Lula fez severas críticas ao mercado livre de energia na semana passada, e disse que ´o povo pobre está pagando proporcionalmente mais´. Isso é correto? O ACL tem realmente distorções?

LM – Estas declarações devem ser interpretadas como palavras de um não especialista falando com não especialistas. Portanto, não se pode esperar que sejam tecnicamente impecáveis. Entretanto, não se trata de uma afirmação sem qualquer embasamento. O governo vê que algo não está funcionando bem no mercado, mas o diagnóstico não pode ser simplista resultando em uma solução inadequada.

FLJ -O pobre está pagando proporcionalmente mais?

LM – Deveríamos reestruturar esta pergunta – o mercado regulado (ACR, atendido pelas distribuidoras) está pagando proporcionalmente mais? A resposta é sim. Isso não significa dizer que o pobre o esteja. Há mecanismos de proteção como tarifas de baixa renda. Além disso, nem todos que estão no ACR são pobres – há muitas pessoas físicas e jurídicas (ricos e não tão ricos) que fazem parte do ACR.

FLJ -Com esta correção, por que os clientes do ACR estão pagando mais?

LM – Não há concorrência. Não há opção de buscar um fornecedor alternativo, a menos que o consumidor instale sua própria geração distribuída, a chamada “GD”, com uma placa solar no telhado ou aderindo a um pacote de GD “por assinatura”.

Mas esta não é a razão principal. O consumidor cativo (ACR) carrega um peso desproporcional dos encargos, contratos legados e outros custos que o consumidor do mercado livre (ACL) e o autoprodutor conseguem em parte evitar. Alguns custos são mais evidentes, outros mais sutis. Há uma preocupação que com a continuada abertura do mercado e com o excesso de capacidade que existe hoje no sistema, a transferência de renda entre os mercados ACR e ACL se agrave.

As novas transações no ACL não deveriam deslocar contratos de plantas eficientes e necessárias que inclusive prestam confiabilidade ao sistema como um todo. São legados, mas não são “stranded”. As plantas vão continuar operando, A competitividade de muitos contratos corporativos de compra de energia (PPAs) atuais resulta, em parte, de um by-pass não econômico.

FLJ -E se a partir de 1 de janeiro o governo não avançasse com a redução de exigências para operação no mercado livre, como está previsto?

LM – Esta é a solução temida, haja vista a observada postura das administrações anteriores do PT, as quais desenvolveram um bom mercado competitivo de contratos de longo prazo, mas não se preocuparam tanto em estimular a concorrência no varejo. Fechar o mercado não é a solução para problemas mais profundos do setor. Não vão ser resolvidos desta forma. Tampouco a abertura plena do mercado iria resolve-los. Retroceder na abertura de mercado seria um remédio inadequado para curar um paciente que necessita outro tipo de tratamento.

FLJ -As medidas sendo discutidas não podem distorcer o mercado?

LM – É importante ressaltar que, não sei tudo que está sendo discutido. Presumo que a preocupação subjacente é que o governo coloque uma “moratória” na abertura do mercado. Em primeiro lugar, há que entender que o mercado que existe hoje em dia não é pristino, mas já está cheio de distorções. Os geradores renováveis (e os compradores dos PPAs) não arcam com o custo que impõem ao sistema, tais como mitigação da intermitência, pagam um preço de mercado de curto prazo distorcido, e não “enxergam” qualquer sinal locacional. Isto tem levado a uma sobre oferta, concentração geográfica, e custos bilionários de transmissão que são socializados.  Não são benefícios resultantes de maior eficiência econômica.

A abertura de mercado, sem a correção das distorções atuais, poderá sobre onerar o mercado regulado, do consumidor residencial. Deve ser feita uma análise muito acurada dos subsídios cruzados entre ACL e ACR, e promovendo uma distribuição mais racional e eficiente dos custos atuais e futuros. Logo a questão central para e ser discutida não é se o governo irá “distorcer o mercado”, mas como eliminar as distorções que já existem hoje, permitindo um crescimento sustentável do mercado livre.

FLJ -A regulamentação do setor elétrico precisa de uma reforma?

LM – Não tenho a menor dúvida, mas é preciso qualificar. Não se trata de uma reforma com dez decretos e três meses de duração. Falo de uma reforma de fato, aos moldes do que foi feito em 1998, quando participei do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (RE-SEB), e aprimorado em 2004. Nos últimos quase 20 anos presenciamos tapa-buracos, band-aids e emendas jabutis. E muitos deles.

A reforma agora seria mais complexa do que em 1998, por três razões: 1) os agentes, em sua maioria privados, já têm posições firmadas e contratos que não podem ser alterados; 2) O setor de energia está muito mais complexo, seja pela emergência de novas tecnologias seja por questões climáticas e 3) o congresso tem um protagonismo muito maior e não vai ceder seu espaço facilmente. Mas não são desafios intransponíveis. Havia outros em 1998 que foram superados.

FLJ -Os comentários de Lula podem ser conciliados com esta visão de reforma do modelo?

LM – De uma forma sim, mas acho que o presidente Lula espera (e com razão) alguns resultados mais rápidos, estancando a hemorragia de subsídios, parte pagos pelos contribuintes, parte pelos consumidores. Com a iminente abertura de mercado, o governo sente que há uma urgência na revisão destes temas.

Há subsídios para todos os gostos, que não param de crescer. Presumo, exclusivamente com base em informações públicas, que o presidente Lula teme que se não for tomada uma ação mais imediata vai haver dois efeitos: 1) subsídios e benesses do Congresso e setoriais não vão parar de crescer e (2) o bolo de subsídios vai se distribuir de forma desigual entre o ACR e o ACL. Se forem estas as preocupações, há uma lógica  em tratar o assunto com urgência, tendo em mente o princípio basilar de continuar promovendo e ampliando uma concorrência saudável na geração e no varejo.