Por Eduardo Toledo
A reação do Supremo Tribunal Federal às investidas de grupos radicais contra as instituições democráticas tem gerado um grande debate a respeito dos limites da sua atuação.
É mais do que evidente, como escrevi na semana passada aqui no FLJ, que o “excesso” de iniciativas do Supremo decorre da grave omissão (ou do excesso de “discrição”) de instituições que deveriam ter cumprido o seu papel constitucional, sendo inevitável apontar a Procuradoria-Geral da República como a principal (ir)responsável pelo contexto atual.
Tem ficado cada vez mais claro que o Poder Executivo, por sua vez, está tentando assumir o protagonismo, trazendo para si iniciativas que têm potencial de colocar parâmetros na atuação do STF.
Por exemplo, logo antes da posse do atual Advogado-Geral da União foi criada, por decreto e dentro da estrutura da AGU, a Procuradoria de Defesa da Democracia, para fins de combate à desinformação. O nome impactante e o objeto geraram reações na imprensa e em meio a “especialistas”. Mas o debate logo ficou esquecido ante a superveniência dos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Agora está em discussão uma possível medida provisória que já ganhou o apelido de “Pacote da Democracia”, com uma série de iniciativas para “parametrizar” a atuação das instituições contra “crimes antidemocráticos”.
Durante a disputa pela presidência do Senado – que teve como enfoque a atuação do STF -, o Senador Rodrigo Pacheco deu o tom do que precisa ser feito para que as insatisfações com o STF sejam sanadas: legislar. Mais do que revanchismo ou retaliações, legislar sobre o Supremo é a medida constitucionalmente adequada para aprimorar o equilíbrio entre os Poderes. E isso já foi feito sem traumas no passado, como a Emenda Constitucional 45 (aprovada no início do primeiro governo Lula).
Aqui cabe uma breve observação: mudanças normativas do papel institucional do STF são sempre muito difíceis, pois, a despeito da histeria geral de alguns grupos contra a Corte, poucos querem efetivamente mudanças. O que querem, na verdade, é um Tribunal para chamar de seu, não um Tribunal melhor. É preciso ter isso em mente quando começarem as discussões sobre reforma do STF.
Mas, sem qualquer questionamento a respeito das boas intenções das propostas gestadas dentro do Poder Executivo, é preciso que esse papel de reforma institucional seja protagonizado pelo Congresso Nacional. Centrar o protagonismo da defesa das instituições no Poder Executivo pode ter efeitos colaterais graves no futuro, pois sabemos do risco de que o fanatismo volte à chefia do Estado.
Não tenho dúvida do papel da AGU no combate de campanhas de desinformação que prejudiquem políticas públicas adotadas pela União (por exemplo, que atrapalhem campanhas de vacinação ou de cadastramento de beneficiários em programas sociais). A AGU está obrigada a assim proceder (sob o nome de uma nova unidade ou não). Também não há dúvida de que cabe à AGU a defesa do patrimônio da União (incluindo os prédios públicos dos demais Poderes, não apenas do Poder Executivo) e a iniciativa para obter o devido ressarcimento dos danos causados por vândalos.
Mas a discussão levantada em torno da nova procuradoria dentro da estrutura da AGU chama a atenção por outro aspecto, talvez mais relevante. O nome da nova unidade, “Defesa da Democracia”, pode induzir ao raciocínio de que hoje não existem responsáveis pela defesa da democracia, o que está equivocado. Todas as instituições, públicas e privadas, carregam essa responsabilidade dentro de um regime democrático.
O problema que enfrentamos nos últimos anos não foi a falta de defesa da democracia (que foi firmemente defendida e, por ora, preservada), mas a falta de defesa das instituições democráticas brasileiras, que tiveram que exercer poderes e adotar medidas inéditas para se protegerem.
Embora legítimo, é possível afirmar que a forma como está sendo combatido o extremismo e suas tentativas de subverter o Estado Democrático de Direito precisa evoluir da excepcionalidade para a regularidade. E tem sido excepcional não porque o Tribunal assim está agindo, mas antes pela falta de ação de quem deveria ser a ponta de lança contra as ações e manifestações voltadas para minar a confiança da sociedade em suas instituições. No entanto, é preciso reconhecer: há elevado desgaste da Corte.
Como República, Democracia e Institucionalidade são fenômenos políticos e não fenômenos naturais, sua complexidade não é compreendida pela população de forma tão fácil quanto a ideia de Liberdade (de locomoção, de expressão e etc). Além disso, os fenômenos políticos precisam fazer sentido para a população de modo que esta se sinta imbuída da necessidade de defendê-los.
Essa dificuldade de explicar fenômenos políticos é que expõe o STF a críticas das mais variadas quando assume o papel central de restabelecer a ordem usando instrumentos que, a despeito do acerto, passam a imagem de que está se excedendo.
Por isso, a ideia da criação de uma Procuradoria de Defesa da Democracia decorre, em verdade, da necessidade de repensarmos o nosso modelo atual de defesa das instituições, considerando a premissa desse texto: o STF só agiu com mais intensidade em razão da omissão daqueles que deveriam ter cumprido o seu papel. Essa reavaliação do sistema exige uma discussão não apenas dos limites do STF, mas, principalmente, sobre o papel atribuído ao Procurador-Geral da República.
Não se trata de discutir o modelo atual de nomeação do Procurador-Geral da República (indicação do Presidente da República, sabatinado pelo Senado Federal). No entanto, é inquestionável que o formato atual (incluída a recondução ao cargo, em especial) tem colocado o PGR em situações claras de conflito de interesse incapacitante, permanecendo inerte diante de situações em que deveria ter sido mais firme no controle dos atos do Poder Executivo e na defesa das instituições de nossa Democracia. A mesma dificuldade terá o Advogado-Geral da União se assumir este papel tão importante, pois se trata de um cargo diretamente vinculado ao Presidente da República.
Uma das frases mais relevantes em Brasília é: “não há vácuo de Poder”. Se uma entidade deixa de exercer o seu papel institucional, alguém o exercerá. E foi o que aconteceu.
Para atacar diretamente o problema da omissão institucional, precisamos considerar a criação de algo similar à figura do special prosecutor ou special counsel, utilizado no Caso Nixon e, recentemente, durante a presidência de Donald Trump nos Estados Unidos. Mais recente ainda, houve a designação novamente para atuar na investigação sobre documentos encontrados numa residência do presidente Biden. Esse procurador especial foi utilizado em situações nas quais havia potencial conflito de interesse do Attorney General, como, por exemplo, investigações que poderiam alcançar o presidente dos Estados Unidos.
Por que não institucionalizar algo parecido no Brasil? Por que não prevermos a figura de um procurador, talvez indicado pelo STF em lista tríplice, sabatinado pelo Senado e nomeado pelo presidente da República? E com mandato (de 4 a 6 anos, talvez, para dar mais estabilidade e autonomia ao trabalho), sem recondução e sem a possibilidade de ser nomeado para o STF ou para o STJ durante esse período. Por se tratar de algo novo, o seu desenho institucional estaria aberto para discussão.
As competências desse procurador, detalhadas em lei, poderiam abranger da defesa das instituições democráticas à iniciativa para o processo penal contra detentores de foro por prerrogativa de função.
Várias alterações normativas teriam que ser feitas com a eventual criação desse novo ator do jogo político-democrático, mas seria um ponto de partida interessante para sairmos da situação excepcional em que nos encontramos e preservar o Supremo Tribunal Federal de diversas críticas que hoje sofre, embora absolutamente equivocadas.
*O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor e não reflete o posicionamento do FLJ