Lula tem boa relação com Congresso, mas aposta na polarização deve pesar

Especialistas se dividem sobre avaliação do governo nos primeiros 100 dias

Agência Brasil
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Por Gabriela Guedes

Ao completar 100 dias no poder, um dos trunfos políticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é a boa relação com o Congresso, disse o analista político da MCM e da LCA Consultores, Ricardo Ribeiro. O grande problema é a propensão do presidente a manter uma polarização que não é boa para país, afirmou a sócia-diretora da Gibraltar Consulting, Zeina Latif.

Em entrevista exclusiva à Mover, Ribeiro comentou que os primeiros 100 dias são marcados pelo apoio dos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), e do Senado, Rodrigo Pacheco (MDB).

Ele afirmou que a principal diferença entre os dois outros mandatos de Lula como presidente é a situação da economia mundial e local. “Agora é mais desafiador, não tem no horizonte um boom de commodities, tem que acertar o fiscal e isso é sempre complicado, porque cortar gastos ou aumentar receita gera resistência”, destacou.

A convite da Mover, Ribeiro e Latif fizeram um balanço sobre as dinâmicas políticas que movimentam os primeiros meses da nova gestão e analisou o papel de figuras importantes que têm atuado no governo.

Ribeiro destacou que os atos de vandalismo em Brasília ocorridos no início do ano ajudaram a dissipar a ideia de uma insurgência após a eleição mais polarizada no Brasil desde a redemocratização. “O 8 de janeiro resolveu um problema para o governo”.

Confira a seguir os principais pontos da entrevista com Ribeiro e Depois com Latif.

Ribeiro:

Nesses primeiros três meses do governo, Lula tem sido muito pragmático, mantém boa relação com [o presidente da Câmara dos Deputados] e incorporou três partidos importantes de Centro-Direita aos ministérios, o PSD, o MBD e o União Brasil. O presidente está lidando de maneira realista com a maioria do Congresso. Ainda não houve um teste para avaliar o tamanho do apoio do Congresso, mas a expectativa predominante dos analistas políticos é de que o governo tem boas chances de aprovar Reforma Tributária e o arcabouço fiscal, as duas matérias mais importantes do ponto de vista político e econômico para o governo neste ano.

Reforma Tributária

O governo está articulando bastante a favor da Reforma Tributária. O primeiro passo para reaquecer a discussão foi a criação de um grupo de trabalho para discutir a reforma. O governo está atento, o Haddad está articulando com governadores e prefeitos de capitais. Lula sabe que aprovar a Reforma Tributária vai ser um marco importantíssimo para o governo. Ao contrário [do ex-presidente da República Jair] Bolsonaro, Lula já está interferindo nas articulações políticas. Não está fazendo varejão, porque não é o papel dele, mas têm ocorrido conversas de cúpula com o Lira, com o Pacheco e com lideranças de partidos também.

O Papel de Gleise e Haddad

Este é o estilo do Lula de liderar, deixar o ambiente de maior debate, inclusive o público, para depois ele arbitrar. No caso da Gleisi [Hoffmann, presidente do Partido dos Trabalhadores) e do [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad, eles cumprem dois papéis diferentes, que são importantes para o Lula. A Gleisi é a voz crítica e que faz a conexão entre o governo e as alas mais à esquerda do PT. O papel do Haddad é outro, que ele está tentando e conseguindo em grande medida, que é servir de ponte entre o mercado e o governo, de criar perspectivas mais otimistas, ou menos catastróficas para a política econômica.

Nas questões essenciais e nos fundamentos econômicos, o Haddad muito provavelmente vai prevalecer sempre. No caso de arcabouço e reoneração de combustíveis, teve ali um período em que ele ficou exposto na chuva, mas, no final das contas, a posição dele prevaleceu. E só pode funcionar desta maneira. Se o Haddad não prevalecer nas decisões de política econômica, ele vai ser um ministro da Fazenda dispensável, e ministros da Fazenda ou da Economia vistos como frágeis em discussão econômica não servem para nada. A meu ver o Lula tem essa percepção, entende que um ministro da Fazenda precisa não apenas ter, mas parecer também ter uma voz predominante, como alguém com capacidade de decisão e encaminhamento de decisões econômicas.

Esse confronto entre Haddad e Gleisi, que está mais apaziguado nas últimas semanas, tem um efeito positivo para o ministro, cria a figura de que ele é a autoridade do governo com uma visão mais ponderada da economia. Isso foi absurdamente alcançado e hoje o mercado vê o Haddad de maneira muito mais positiva do que há meses. Também a relação do [presidente do Banco Central] Roberto Campos Neto com o Haddad corrobora essa função do ministro, que é uma estratégia política do Lula, de deixar a Gleisi bater e Haddad aparecer como o ponderado. É isso que é preciso para um ministro da Fazenda.

Atração de estrangeiros

Uma perspectiva positiva para Lula é que há melhor inserção do Brasil no cenário externo, uma chance concreta do acordo do Mercosul com a União Europeia ir adiante. Na questão ambiental, uma imagem mais positiva do país também pode facilitar a atração de investimentos externos, a melhora da relação com a China. Esse ambiente favorável ao Brasil do ponto de vista internacional é algo que pode ajudar o governo e a economia até o final do mandato.

Ambiente polarizado

O que a gente nota é que o Lula e os petistas ficaram bastante ansiosos com o desempenho da economia já desde o primeiro ano, porque o país tem uma parcela grande ainda de eleitores que são bolsonaristas ou ainda têm uma visão muito ruim do PT. O governo não tem um saldo de prioridade muito confortável, não vai ter neste ano e nem no restante do mandato. Essa ideia de que a economia precisa crescer de qualquer jeito, senão a popularidade vai cair e os problemas políticos irão se acentuar, é algo que perpassa a visão do Brasil e da situação do governo, e está no horizonte de preocupações do Lula. O risco é que se o governo entender que dá para forçar um crescimento para além do razoável a inflação pode sair do controle. A economia vai crescer por volta de 1%, que é baixo mesmo, mas não há muito o que fazer para este ano. E se tivesse prevalecido [na nova regra fiscal] uma visão de que precisamos gastar sem nenhum controle, poderia ser um grande tiro no pé, poderia fazer com que a inflação aumentasse. Inflação em alta também corrói a popularidade, não é só a questão do crescimento. É nesse fio da navalha que o governo tem que se conduzir. Tentar aquecer a economia, mas não com medidas não sustentáveis, que podem gerar inflação mais adiante.

Latif:

Segundo a sócia-diretora da Gibraltar Consulting, Zeina Latif, o presidente mantém o discurso ainda focado no polarização vista na campanha e com o foco no curto prazo. “Esta contaminação da política vai cobrar um preço do governo”, afirmou.

Em entrevista exclusiva à Mover, a economista explicou que, ainda que tenha melhorado globalmente a imagem do Brasil sob a perspectiva da pauta ambiental – um trunfo da economia brasileira em meio ao cenário de crise global – a eleição de Lula por si não deverá trazer investimento estrangeiro. Segundo Zeina, para isso ocorrer, é preciso “criar oportunidades”.

Doutora em economia pela Universidade de São Paulo, Zeina comentou alguns pontos importantes para o cenário econômico brasileiro, além de suas impressões sobre como o governo Lula tem encaminhado outras pautas do setor.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Eu vejo um modus operandi [do governo] muito preso ainda na polarização da campanha. Essa contaminação da política gera muita incerteza, o setor produtivo fica sem saber o que vai acontecer, o que vai ser desfeito. Isso é ruim e atrapalha a agenda do próprio governo.

São sinais de um governo que está menos preparado do que deveria, considerando que já esteve no poder, e muito com a política ainda contaminando as suas pautas. O governo demonizou tanto a regra do Teto [de Gastos], ‘ah, é do [ex-presidente da República Michel] Temer, o Temer é golpista’ e agora vai ter dificuldade com a nova regra [fiscal]. Podia estar negociando a Reforma Tributária com mais tranquilidade.

Pauta Ambiental

Do ponto de vista da imagem do país, [a eleição do Lula] teve um ganho, mas isso não se traduz em aumento do investimento estrangeiro mais rapidamente. Parte da atração de recursos de agências multilaterais tem a ver com a questão ambiental. Eu avalio que esse trabalho precisa ser mais célere. Por exemplo, na viagem que o Lula fez aos EUA em fevereiro para se reunir com o [presidente americano] Joe Biden, o ideal seria já levar pelo menos o rascunho ou o projeto preliminar do enfrentamento que o Brasil pretende na questão ambiental. A gente está falando de uma agenda que é discutida há tanto tempo pelo PT, pela esquerda, pelo grupo da Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente], que eu imaginei que ia ter alguma coisa já concreta. Não é só de recurso de lá de fora que a gente está precisando. Eu tenho a impressão de que a gente vai precisar de uma expertise, de um apoio maior. De uma forma geral, é um governo que ainda não está bem-organizado.

Investimento estrangeiro

O Brasil tem um diferencial favorável de juros, e estamos falando de um contexto em que a moeda americana perdeu um pouco de força, o mundo está muito desafiador e o investidor estrangeiro olha o relativo. Mesmo que a história do Brasil não seja uma história brilhante – muito pelo contrário, é um país de desempenho medíocre na economia – ele é um país que tem as instituições funcionando. Em um mundo com a geopolítica mais complexa, em que commodities continuam tendo um peso importante, faz sentido um olhar favorável em países como o Brasil.

Briga com o BC

Uma marca do PT e do Lula é o foco muito grande no curto prazo. Aí, obviamente, entram essas críticas ao Banco Central, que também acabam sendo ruins para o próprio governo.

Agora era a hora de deixar o BC fazer o seu trabalho. Não ia demorar muito para cortar os juros, e aí temos esses ruídos todos que acabam sendo prejudiciais ao próprio governo. [Lula está gastando] energia em coisas que poderiam estar sendo evitadas e com efeitos colaterais ruins.

Agenda econômica

Quando falamos na agenda do país, a primeira coisa é discutir o que não pode ser feito. A gente tem muito na cabeça que para crescer é preciso ter ativismo estatal. Não atrapalhar o setor privado já é grande coisa. Essa visão de que o governo precisa estimular a economia já começa aí o problema. A primeira coisa é garantir um ambiente macroeconômico mais estável. E o governo acaba inserindo ruídos desnecessariamente com a cobrança de corte de juros, e agora a discussão do arcabouço fiscal. Poderia ser um ambiente menos ruidoso.

Outra coisa é garantir a Reforma Tributária para este ano. Talvez não seja a [Proposta de Emenda à Constituição] PEC 45, que eu acho que era o melhor desenho, é possível que caminhe então para o IVA Dual [proposta de unificação de impostos do governo]. Não vai ser aparentemente a reforma dos nossos sonhos, mas vai ser um passo muito importante.

A outra coisa, mas sinceramente não está no radar, é a agenda microeconômica de melhorar o ambiente de negócios, reduzir a insegurança jurídica. É uma agenda trabalhosa, que envolve revisão de políticas públicas, de marcos jurídicos. Não é uma agenda para um governo tão focado em curto prazo.

Hoje vemos uma agenda muito ligada a temas. A Receita Federal, por exemplo, a discussão sobre o voto de qualidade do [Conselho de Administração de Recursos Fiscais]. Tem uma bronca generalizada do setor privado de que a Receita Federal vai além do que seria razoável, porque ela cria a legislação, ela interpreta e ela pune. Então, há um desconforto enorme. Eu vejo uma agenda de governo muito pautada na questão da receita. O próprio discurso do [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad é “vamos combater o patrimonialismo”, mas só do lado da receita. Ele não fala da despesa, não tem uma reforma estrutural para combater o patrimonialismo do lado da despesa. E mesmo do ponto de vista de qualidade das políticas públicas, ainda vamos ver, porque tem uma sinalização de melhorar, por exemplo, o Bolsa Família, mas eu acho que está bem atrasado, de novo eu esperava algo mais célere. A gente está falando de um Bolsa Família que no passado custava menos de R$50 bilhões e que agora vai custar R$175 bilhões, não é brincadeira. Tudo bem, tem o ajuste do Cadastro Único, tem mesmo que fazer isso, mas estamos falando de um volume de recursos muito grande, mal focalizado e que teria espaço para melhorar o desenho do programa. Tem coisa que tinha que estar mais madura já.

Equilíbrio dos poderes

Hoje o Brasil tem instituições mais sólidas do que no passado, tem uma oposição mais bem definida, uma base aliada que não vai fechar os olhos para tudo. Toda medida para aumentar a tributação vai ser analisada com muito cuidado. Não vai ter vida fácil mesmo dentro da base aliada. Você tem instituições de controle de contas que hoje não vão deixar escapar coisas que deixaram lá atrás. O risco do governo é o de deixar escapar oportunidades, de não avançar em temas que poderíamos ter uma agenda mais ambiciosa.