Mudar meta de inflação do BC seria retroceder, diz economista

Segundo Samuel Pessoa, o país vive hoje uma grave disputa distributiva, onde interesses localizados levam vantagem

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Por Marcio Aith

‍O Brasil precisa decidir se quer ter pilares fiscais sólidos, como o Chile e a Colômbia, ou se enveredar pela confusão econômica da Argentina ou Venezuela. É o que disse ao FLJ Samuel Pessoa, doutor em economia e chefe do Centro de Crescimento Econômico da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).

Pessoa diz que o país vive hoje uma grave disputa distributiva, onde interesses localizados, entre eles servidores e regimes fiscais como a Zona Franca de Manaus, levam vantagem. 

Quanto às pressões do governo para mudar o regime de metas inflacionárias, Pessoa, que também é professor assistente da Escola de Pós-Graduação em Economia da FGV (EPGE/FGV), disse que seria um retrocesso.

De acordo com o economista, as metas para 2023 e 2024 – atualmente em 3,25% e 3%, respectivamente – não são baixas e estão próximas ao estabelecido por importantes economias sul-americanas, como o Chile, o Peru e a Colômbia.

“Se Chile, Peru e Colômbia vivem bem com 3% de meta, por que o Brasil não viveria?”, ele acrescenta, ressaltando que todos os países citados têm em semelhança com o Brasil a especialização em commodities e a alta volatilidade em termos de troca.

Confira a seguir a entrevista na íntegra:

FLJ: O governo pressiona o Banco Central a mudar o regime de metas de inflação para tolerar um índice mais alto. As metas para 2023 e 2024 são de 3,25% e 3%, respectivamente. O senhor não acha que faz sentido mudar as metas, especialmente a de 3%?

Samuel Pessoa: Não, 3% não me parece muito baixo. É 1 ponto percentual acima da meta Se Chile, Peru e Colômbia vivem bem com 3% de meta, por que o Brasil não viveria? utilizada pelos países desenvolvidos. Além disso, é a meta empregada pelos países do nosso continente que tem a economia arrumada, como Chile, Peru e Colômbia. Todos esses países são especializados em commodities, todos têm uma alta volatilidade em termos de troca. Por simetria ou por paralelismo, não parece que a meta seja muito baixa. 

FLJ: Mas qual seria o custo dessa mudança?

Samuel Pessoa: Se o governo quiser mudar a meta, não vejo muitos problemas. Não gosto tecnicamente dessa saída. Tecnicamente o melhor é que as instituições continuem funcionando do jeito que estão funcionando e que a gente progrida no desenvolvimento institucional, que a gente não tenha retrocesso. O BC hoje tem autonomia operacional. A meta de inflação é decidida pelo CMN, que precisa se reunir para decidir a meta de 2025. Até onde eu sei, eles também têm o poder de revisar as metas já fixadas. O CMN é constituído pelo ministro da Fazenda, pela ministra do Planejamento e pelo presidente do BC. Eles podem se reunir e avaliar que a meta é muito baixa e subir um pouco. Inclusive a do ano que vem. A rigor, não é uma quebra constitucional.

FLJ: O país parece ter ingressado em um descontrole fiscal grave. Como voltar ao equilíbrio, se é que já fomos equilibrados algum dia? 

Samuel Pessoa: Eu acho que o que gera o problema fiscal brasileiro é a associação de uma demanda da sociedade por mais gastos públicos ligado a uma dificuldade da sociedade de entregar mais impostos para o governo. O conflito distributivo na sociedade moderna ocorre na relação com o orçamento público. Quem paga imposto? Quais políticas públicas devem ser priorizadas? 

FLJ: Mas não é a política quem tem resolver isso?

Samuel Pessoa: Aí é que está o problema, a política brasileira não está conseguindo de forma muito produtiva arbitrar o conflito distributivo, e, quando ela não consegue, sobra para o gasto não discricionário, que tem que ser cortado. Nessa disputa distributiva, os grupos de pressão são mais bem sucedidos em defender os seus interesses. Você tem investidores, isenções para diversos grupos econômicos, têm políticas públicas que claramente falharam e que nunca são revistas, como a da Zona Franca de Manaus, regimes tributários especiais, como o “PJotinha”, que claramente são de elisão fiscal, uma longa lista daquilo que meu amigo Marcos Lisboa chama de “meia entrada”. 

FLJ: O governo anunciou um pacote fiscal com uma mudança controversa. Ela traz a volta do voto de desempate pelo representante da Fazenda no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O que o senhor acha disso?

Samuel Pessoa: A mudança no Carf eu acho errada. Em caso de empate, ganha o governo. Isso é muito ruim porque tem, como hipótese subjacente, a ideia de que, quando há um litígio tributário, o setor privado está querendo achacar o setor público. Por isso você deveria dar mais poder de barganha ao setor público nas disputas tributárias com o setor privado. Isso não é verdade. A gente tem uma legislação tributária muito complexa. A gente vê situações contrárias, em que a Receita achaca o contribuinte. A Receita inventa normas, inventa interpretações. O pacote do Haddad não tem nada estrutural, não tem novos impostos. O ministro anunciou um conjunto de medidas tópicas, de até R$240 bilhões, que ele próprio reconheceu que metade não deve vir. A maioria são medidas não recorrentes, que podem até aliviar o problema fiscal deste ano, mas não resolvem o problema estrutural. As medidas são essencialmente parecidas com um grande programa de refinanciamento de dívidas. 

FLJ: E a proposta de aprovar no Congresso a construção do IVA Nacional, unificando ISS, CNF, PIS/COFINS E IPI?

Samuel Pessoa: Essa proposta está madura, é a reforma mais importante que existe hoje para elevar a taxa de crescimento da produtividade no Brasil. Se a gente aprovar uma boa proposta, é uma ótima notícia para o país. Vai reduzir a burocracia e melhorar a vida do empreendedor e gerar muitos resultados bons em um horizonte de 20 anos. Mas não vai gerar ganhos arrecadatórios. É neutra sob o ponto de vista da carga tributária. Mas aproxima o cipoal tributário brasileiro das melhores práticas. Até o fim do ano vamos descobrir se estamos mais parecidos com o Chile e a Colômbia, de um lado, e a Argentina e a Venezuela, de outro.