Como o Congresso sequestrou o governo Lula

Por dez anos, presidentes fracos deixaram o Legislativo tomar conta do Orçamento

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Vou narrar uma novela que começou no dia 24 de dezembro de 2013, e exibe hoje, sob Lula, seus capítulos mais dramáticos.

Naquela data, a presidente Dilma Rousseff juntava forças para tentar lançar-se a um segundo mandato.

Dilma tinha uma personalidade irascível e uma péssima relação com o Congresso Nacional. Nesse contexto, os parlamentares mudaram a Lei de Diretrizes Orçamentárias para obrigar o governo a pagar cada uma das emendas parlamentares individuais.

Até então, somente as emendas dos parlamentares escolhidas pelo governo eram pagas. O resto caía na vala comum do “contingenciamento” de verbas ou simplesmente eram desprezados.

Para que se entenda o fato, é preciso esclarecer primeiro o significado de emendas: são propostas feitas individualmente por parlamentares para beneficiar, com recursos, seus redutos eleitorais. O mecanismo funcionava como um complexo sistema de trocas de apoio por meio do qual o Executivo controlava o Congresso.

A mudança feita naquele dezembro de 2013 quebrava esse mecanismo e começaria  a tirar o poder da Presidência e a deslocá-lo para o Legislativo.  

Pulemos adiante. Fevereiro de 2015. Dilma, já reeleita, enfrenta denúncias de irregularidades que resultariam nas pedaladas fiscais que a retirariam do poder. Surge, na Presidência da Câmara, seu pior adversário: Eduardo Cunha.

À época, havia, dentro da burocracia governamental, técnicos que defendiam que o governo poderia continuar recusando-se a pagar as emendas individuais dos parlamentares. Afinal, a Constituição, estando acima da Lei de Diretrizes Orçamentárias, dava ao governo o poder-dever de preservar as finanças nacionais.

Eduardo Cunha não gostou. E não teve dúvida. Colocou para tramitar, com urgência, uma PEC para incluir, na própria Constituição, a execução obrigatória das emendas parlamentares ao orçamento até o limite de 1,2% da receita corrente líquida.

A PEC foi aprovada, e Cunha a comemorou nos seguintes termos: “A previsão já estava na LDO, agora vai para a Constituição. A aprovação foi uma redenção da Casa”.

Vamos pular mais dois anos nessa novela. Em 15 de dezembro de 2016, o presidente da República é Michel Temer, que sucedeu Dilma Roussef. Não tinha qualquer apoio popular e governava com o apadrinhamento de lideranças como Renan Calheiros (presidente do Senado) e Rodrigo Maia (presidente da Câmara).

Temer assistiu passivamente a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que limitava o crescimento das despesas do governo brasileiro durante 20 anos. Apesar de seus méritos inegáveis, o diabo está nos detalhes…

O governo ganhara um teto de gastos, mas, lembrem-se, também ficou obrigado a pagar todas as emendas parlamentares individuais. Faltou dinheiro. A saída encontrada, nunca divulgada com a relevância que merecia, foi deixar de cumprir despesas obrigatórias.

Foi um marco histórico. O Executivo passou a enxugar os gastos, mas o Legislativo passou a nadar em dinheiro.

O desequilíbrio entre os poderes aumentou ainda mais em junho de 2019,  sob a Presidência de Jair Bolsonaro. Na ocasião, o Congresso aprovou outra PEC incluindo na Constituição a obrigatoriedade de o governo pagar também as emendas de bancada – propostas de autoria das bancadas estaduais no Congresso Nacional relativa a matérias de interesse de cada Estado ou do Distrito Federal.

Cresceu ainda mais o poder dos congressistas de distribuir recursos públicos sem que, paradoxalmente, sejam responsáveis pelos resultados das políticas feitas com esse dinheiro.

Segundo Cláudio Couto, professor da FGV SP, todas essas mudanças levaram a um outro tipo de presidencialismo. “Algo que eu chamaria de governo congressual”, diz ele. “Esse novo presidencialismo fez pender o eixo para o lado do Congresso, produzindo um balanço de poder distinto, com o Legislativo muito mais poderoso, capaz de resistir (ou mesmo se opor) à agenda presidencial, fazendo avançar sua própria agenda, seja ela pulverizada, no varejo ou mais estruturada”.

Segundo Couto, os parlamentares não têm capacidade, organicidade e um entendimento programático mais geral do país para construir uma agenda mais estruturada. “Atuam no varejo de seus interesses paroquiais e, quando muito, no atacarejo de seus interesses setoriais” Já Lula, diz o professor, “sem maioria, com um Congresso tão à direita e com menos margem de manobra para negociar (já que não tem mais as moedas de liberar ou não os gastos para as emendas individuais e de bancada), fica sem força para peitar o congresso no caso das emendas de comissão, que acabaram virando o sucedâneo das emendas de relator”.

Couto referiu-se às emendas do Congresso que ainda não são impositivas: as de comissão e as de relator. Diz ele que a hipertrofia do Congresso constrange o governo a pagar até mesmo essas duas, não obrigatórias. Na semana passada, Lula esboçou uma reação ao reduzir, de R$ 16,6 bilhões para R$ 11 bilhões, os gastos das emendas de comissão. Ocorre que os
R$ 11 bilhões já superam os R$ 8 bilhões liberados em 2023. Ou seja, Lula aumentou em R$ 3 bilhões a liberação desse dinheiro, que nem obrigatório é, fazendo parecer que reduziu a conta.

Aonde tudo isso vai parar? Como retomar uma certa razoabilidade orçamentária? Diz Cláudio Couto: “é o que eu venho dizendo com relação a todas essas mudanças nos últimos anos: o gênio saiu da lâmpada. Quem vai colocá-lo de volta?”