França diz que Porto de Santos não será privatizado e que governo vai bancar 100 novos aeroportos

"Aeroportos pequenos têm que ser subsidiados na veia, como uma escola ou um hospital"

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Por Márcio Aith

Em entrevista exclusiva ao FLJ, o ex-governador de São Paulo e hoje Ministro de Portos e Aeroportos do governo Lula, Márcio França, disse que as privatizações de aeroportos no Brasil não foram privatizações, mas “internacionalizações” para estatais de outros países. França defendeu a capacidade da Infraero em gerenciar os aeroportos do país e prometeu ampliar a malha aérea agressivamente ao longo dos próximos quatro anos, multiplicando pequenos aeroportos.

Em relação à privatização do Porto de Santos – o mais importante do Brasil -, França reconheceu a divergência com o atual governador de São Paulo, e afirmou categoricamente que não seguirá com o processo de venda da autoridade portuária. Leia abaixo a íntegra da entrevista ao FLJ.

Aith: O sr. diz que o Porto de Santos não será privatizado. Mas causou estranheza o atual governador de São Paulo ter dito o contrário ao sair de um encontro com o presidente Lula. Afinal, o porto será ou não será privatizado?

França: Não. Não existe parâmetro no mundo desse formato (de privatizações de portos) que o governo Bolsonaro queria implantar no Brasil. Obviamente estamos abertos a ouvir sugestões de alguém que foi eleito governador de São Paulo. Ele tem que ser sempre respeitado, Não é? Ninguém se elege governador à toa. Mas temos visões diferentes, e Lula disse a ele o que eu também já disse. 

Aith: Mas implantaram. O Porto do Espírito Santo é um exemplo.

França: É o primeiro caso do mundo de venda de uma autoridade portuária. Na verdade, foi o segundo. O primeiro foi na Austrália. Mas é incrível que, em todos os países desenvolvidos no mundo, ninguém vende a autoridade portuária. Faz sentido privatizar ou outorgar serviços dentro do porto – dragagem e sinalização, por exemplo -, mas nunca privatizar a  autoridade portuária. 

Aith: Mas qual é a diferença entre privatizar a autoridade portuária e privatizar outros bens e serviços públicos?

França: Vender a autoridade portuária é tão absurdo quanto vender a Polícia Rodoviária Federal ou a Polícia Federal. Ou então o Judiciário, por exemplo. Imaginemos que, sendo muito caro manter o Poder Judiciário, você o venda para alguém. Agora, qual é a segurança de que, quem vai julgar os casos, não sofrerá influência de quem comprou o Judiciário? Entende? Vou dar outro exemplo, mais próximo de nós. Nós estamos em São Paulo, o maior produtor de laranja do mundo. Hoje travamos uma competição mais acirrada com a China, nossa concorrente. Praticamente toda exportação brasileira de laranja sai do Porto de Santos. Imagine que esse ou outro concorrente comprasse o Porto de Santos e dissesse ‘aqui não vai mais exportar laranja, porque não me interessa exportar laranja. Exportem por outro porto’. É inconcebível. A autoridade não pode ser outorgada a outro país.

Aith: E os esforços para privatizar aeroportos?

França: Esse é outro exemplo. Fizeram muito esforço para privatizar os aeroportos brasileiros. E o que aconteceu? Eles não foram privatizados. Na verdade, acabaram sendo internacionalizados, o que é diferente. Porque na realidade, quem comprou os aeroportos brasileiros foram empresas estatais de outros países. A estatal espanhola comprou, assim como a francesa. Não deixa de ser estranho você pensar o seguinte: por que o Brasil, que tem uma empresa tão robusta, como é o caso da Infraero, com 5 mil funcionários, que já controla vários aeroportos, por que que nós não conseguimos fazer o que os outros fazem? Por que temos que pedir ajuda para que os estrangeiros venham tomar conta do que é nosso? Dá uma sensação de que nada dá certo no Brasil.

Aith: Amarante, Campinas e Galeão são aeroportos que estão sendo devolvidos porque as empresas desistiram do negócio. O que vai ocorrer com eles?

França: São aeroportos privatizados para empresas ou mudaram de mãos entre governos porque estatais que compraram, e, por algum motivo, deram valores, deram outorgas mais caras do que deveriam ter dado, ou se arrependeram, e não conseguem dar conta. Veio a pandemia, que naturalmente afetou todo mundo e também a eles, mas, como você sabe, a pessoa fala “eu quero privatizar, desde que não corra riscos, se correr risco, aí eu quero que seja estatizada de novo”. Se fosse do Estado, a gente assumiria o ônus, como assumiu em várias coisas. Do mesmo jeito que os privados deveriam fazer. Só que eles têm esse instrumento: “olha, não quero mais, eu desisto da licitação, desisto da concorrência”, e aí cabe a gente então retomar o aeroporto e licitar mais uma vez, e aí na nova licitação existe uma previsão de você indenizar a empresa a parte que ela já investiu. O caso mais concreto, mais avançado, é o de Amarante. Amarantes é um aeroporto bem grande, do ponto de vista físico, geográfico, ele está muito próximo ali da questão da Europa e da África. Você consegue chegar mais rápido em outros lugares porque está bem na ponta do Brasil e ele foi pensado como um grande hub, tanto para carga quanto passageiros.

Aith: Por que a Infraero não assume esses aeroportos, já que o sr enalteceu a qualidade dos serviços dela?

França: Ou a Infraero entra e toma conta, ou a empresa sucessora entra e paga a indenização. Você só tem duas hipóteses. A Infraero entrará, indenizará a empresa que está saindo e cuida do aeroporto. Mas só temos 49% dos aeroportos. Não temos controle sobre tudo. Isso é ruim porque, por exemplo, o privado vende uma área dentro do aeroporto para construir uma loja, ou um shopping. Ele pega luvas daqueles comerciantes e gera, portanto, um terceiro interessado e também prejudicado naquela história. E o Estado não pode fazer nada. Quer dizer, eu sou um privado que vende várias posições dentro de um aeroporto ativo, muito forte, e depois eu desisto. Só que eu já peguei essas luvas lá atrás, gerando outras implicações, não é? A segurança jurídica é uma coisa importante para quem investe. 

Aith: Que mudança o sr. faria nas licitações?

França:  Várias dessas licitações foram feitas muitos anos atrás. Elas poderiam ter a modelagem mais adequada. Por exemplo: mais tarde se percebeu que talvez fosse interessante você incluir outro aeroporto na licitação. Ou seja: você vincula um mais robusto com um mais frágil, por exemplo. Pela compensação, a empresa consegue segurar o mais frágil. Mas nada impede também que lá na frente você tenha problemas. O certo é que nós vamos ter as duas cartas na manga. Essa e outra, que é mudar as licitações. Nas próximas concorrências, uma coisa importante é dizer o seguinte: se a empresa falar que não vai ficar mais com o aeroporto por algum motivo a gente tem que ter um formato de intervenção imediata já que a Infraero é dona de 49% daquele ativo

Aith: O sr é contrário à privatização dos aeroportos?

França:. Não tenho nenhum preconceito contra a privatização de aeroportos bem sucedidos. Se o aeroporto tem fluxo natural, pode ser privado ou público, pois vai dar dinheiro. É igual vender cachorro-quente em campo de futebol; vai vender de qualquer jeito. O problema é que precisamos encontrar um mecanismo para garantir 60, 70, 100 aeroportos menores, no interior do país, no Amazonas, no centro-oeste, no sertão nordestino, onde não há fluxo natural. Esses aeroportos têm que ser subsidiados mesmo, na veia. É como se fosse um hospital ou uma escola. É a acessibilidade a um índio que está hoje isolado. Para você chegar hoje com um alimento aos Ianomâmis, são 16 dias de carreta. Então, é evidente que você precisa ter alguma alternativa em um país como o nosso. Aviação, aeroportos, são garantias de acessibilidade. Fazem parte da integração e da soberania nacional. Isso vai ter que ter um custo mesmo, é igual você manter uma escola, não é para ter lucro. Você sabe que, na década de 80 quando a aviação chegou ao Brasil, nós chegamos a ter 300 aeroportos com voos regulares, hoje nós temos um pouco mais de 100. Veja como diminuiu a quantidade de cidades atendidas por aviões.

Aith: A ideia de se fazer licitações maiores, com obrigação das empresas pegarem menores para cuidar, excluiria a possibilidade do Estado cuidar, fazer esses aeroportos? É isso?

França: Não, a União pode construir, pode subsidiar, você faz por exemplo uma PPP com 20 aeroportos no Amazonas, ligando, por exemplo, lá do interior do Ceará, que passa reto até o Acre, por exemplo, com linhas que não existem, põem 20 aeroportos, isso custa, por exemplo, 200 milhões de reais. O governo federal vai aportar os 200 milhões, vai construir os aeroportos, e vai licitar numa PPP para quem queira tomar conta. Esses aeroportos podem ou não estar vinculados às hidrovias, que estão aqui no meu Ministério. Você, depois, evidentemente, tem que ter um custeio anual que o próprio governo federal colocará em dinheiro para compensar o não fluxo de passageiros. Você poderia ter, por exemplo, seis aeronaves caras, mas você põe uma aeronave menor, de nove lugares, fazendo só circular naquele trecho, você tem dois voos por dia, isso já dá um tremendo ganho para todo mundo. Na emergência, tem como chegar. Isso vai custar, digamos, 40 milhões por ano, isso é um custo que o imposto tem que pagar para a gente ter isso funcionando para que todo mundo possa ter acessibilidade. 

Aith: Quantos aeroportos novos o senhor pretende, na sua gestão, fazer?

França: Muitos deles já existem. Temos, no Brasil, 508 aeródromos. Desses, 508, tem muitos que podem ser adaptados para receber voos diurnos e noturnos, com pequenos investimentos. A ideia é que a gente entregue no primeiro ciclo de governo, que seriam os dois primeiros anos, 10 a 15 aeroportos em cada um desses roteiros. Um para o Norte, que pega a Amazônia inteira, o outro aqui no Cerrado, no Mato Grosso, nessas regiões que não têm acessibilidade, e outro no interior do nordeste, no sertão do nordeste. Então seriam três faixas, com 10,15 aeroportos cada uma. Numa segunda rodada, a gente faria mais dois transversais e mais uma na vertical, olhando o mapa do Brasil, o que daria perto de 100 aeroportos ao longo de quatro anos.