Não haverá oferta de liquidez para todas as empresas, diz diretor da Fitch

Segundo diretor da Fitch Ratings, Ricardo Carvalho, prolongamento da crise paralisou o mercado de crédito

Solvency Ii Wire/Flickr
Solvency Ii Wire/Flickr

Por: Lucinda Pinto

O prolongamento da crise de liquidez que paralisou o mercado de crédito em fevereiro deve deixar as empresas muito expostas e com dificuldade de rolar suas dívidas, especialmente as menos robustas, afirmou à Mover o diretor-executivo de corporates da Fitch Ratings, Ricardo Carvalho.

Em entrevista exclusiva, ele afirmou que existe o risco de o mercado entrar em uma espiral negativa em que a falta de liquidez comprometa a capacidade de financiamento das companhias, o que levaria a mais downgrades da classificação de crédito – em um cenário que se agrava com a taxa de juros nos níveis atuais.

“É um cenário de restrição de liquidez bastante preocupante”, afirmou Carvalho. “O problema são aquelas empresas de qualidade média que emitiam no mercado local. Essas são a nossa grande preocupação, porque a gente entende que não vai ter oferta de liquidez para todas.” Diante da piora, a Fitch já realizou dez cortes de notas de rating neste ano, e apenas duas elevações. “Esse é número de cenário de crise”, define.

Veja, a seguir, os principais pontos da entrevista:

Mover: Como explicar o efeito de Americanas obre o mercado de crédito?

Carvalho: O ano de 2022 não foi tão favorável para as companhias, porque não houve a recuperação esperada depois da pandemia. Poucos setores voltaram ao patamar de 2019 em termos de EBITDA. Mas, do ponto de vista de liquidez, havia muita oferta. O custo era mais alto, mas a gente via a liquidez fluindo, o que amenizava a situação de queda de geração de caixa. Tinha todo um movimento favorável, de maior base de crédito, de investidores, fluxo, operações mais longas e maiores a custos muito atrativos. E a gente entrou em 2023 com duas variáveis ajudando: a expectativa de geração de caixa mais favorável, e a liquidez fluindo nos mesmos moldes de 2022. E aí teve o efeito de Americanas e o mundo virou. O que era muito abundante passou a ter uma restrição absurda. Naquele momento, a gente tinha o rating de cerca de dez transações em vias de ser publicado, e todas as operações foram colocadas on hold, em um sinal claro de que não era só uma questão de reprecificação, não era só elevação dos prêmios das debêntures, mas existia alguma coisa maior. Isso já se posterga por algumas semanas.

Mover: É um cenário de “credit crunch”?

Carvalho: É um cenário de restrição de liquidez bastante preocupante. Em 20 anos de carreira, poucas vezes vi um movimento tão drástico, em que você sai de um processo de liquidez abundante para uma parada abrupta. É como se um trem andando a 200 km/h tivesse puxado o freio. A parada caracteriza um credit crunch, mas vai depender muito do timing disso. Quanto mais longo for esse tempo, pior.A gente começa a ver algumas operações que estavam prontas, de quatro, cinco anos, virem a mercado com prazo bem mais curto, de um ano. E essas operações basicamente estão sendo encarteiradas e não pulverizadas no mercado. É um sinal claro de que o grande tomador de crédito está parado. E a gente vê o spread subindo. Não tem nenhuma possibilidade desse spread não subir hoje.

Mover: É uma parada pontual ou o esfriamento deve prosseguir?

Carvalho: A gente acha que a régua vai subir. O investidor vai demandar créditos mais fortes do que no passado. Para as empresas de rating superior, a gente acha que o crédito vai chegar. O problema são aquelas empresas que emitiam no mercado local, de qualidade média. Essas são a nossa grande preocupação, porque a gente entende que não vai ter oferta de liquidez para todas.

Mover: A partir de qual nível de rating as empresas vão sofrer mais?

Carvalho: Historicamente, o mercado brasileiro é comprador de empresas com rating ‘AA’ para cima. Mas em 2021 e 2022, diversas companhias com rating A nacional conseguiram emitir. Isso porque houve mais demanda por crédito privado. O que a gente acha que vai acontecer é uma migração para níveis de rating maiores do que antes do evento da Americanas. Essas são empresas que têm mais dificuldade de emitir no mercado internacional por causa de seus tamanhos e porque têm receita basicamente em reais. O risco de refinanciamento delas aumentou, principalmente das empresas médias. E não sabemos quando a liquidez vai retornar. Mas essa resposta precisa acontecer. A gente vai ter uma procura maior de empresas por linhas bancárias, e não pelo mercado de capitais, mas isso também implica em custos maiores, prazos menores e mais garantias sendo concedidas.

Mover: Mas os bancos também estão mais restritivos na concessão de crédito.

Carvalho: Acredito que os bancos continuam bem posicionados em relação a ter recursos para emprestar para o sistema, a questão é o risco que os bancos enxergam em prover mais crédito. Acredito que os bancos vão procurar nível maior de proteção. Acho que é muito mais uma restrição a risco do que de funding. Haverá, então, migração para operações bancárias e para operações curtas.

Mover: A resposta a esses desafios é corte de juros?

Carvalho: A taxa de juros pesa muito para definir o ambiente de negócios, porque ela é indutora de demanda. Tem todo um lado perverso da taxa de juros: uma exposição maior de crédito em um cenário ruim, um custo muito pesado no balanço. Tem que ser um negócio que tenha muita rentabilidade e uma demanda estável para que se consiga ter uma boa performance de geração de caixa. E quando se considera o nível de endividamento das companhias, então há mais queima de caixa, porque é preciso entregar na linha de juros algo muito relevante. E ainda tem uma crise de liquidez que não estava no cenário de ninguém. Quando o juro começou a subir, não havia uma demanda muito forte. Havia um cenário de inflação alta, pressão de custo, sem demanda. Houve dificuldade em se fazer repasse inflacionário. E aí você entra em um período curva de juro ascendente, que deve continuar em patamares elevados ao longo do ano.

Mover: O rating das empresas já está refletindo essa piora de cenário?

Carvalho: O balanço de downgrades e upgrades hoje é muito ruim. Neste ano, tivemos dez downgrades, e apenas dois upgrades – sendo que, em todo o ano de 2021 e de 2022, foram nove rebaixamentos. Esse é número de cenário de crise. Se a liquidez continuar restrita, é bem provável que o número de downgrades aumente. Se a liquidez voltar – e a gente não acredita que ela voltará a níveis que tínhamos em 2022 –, essas empresas menos robustas estarão muito mais expostas. São empresas que precisam que o mercado proveja refinanciamento em uma base constante.

Mover: Veremos uma espiral negativa, que afete a vida das empresas e o crescimento da economia?

Carvalho: Um cenário de mais downgrades transmite uma mensagem de que existe uma fraqueza em relação ao ambiente de negócios. Isso traz mais dificuldade em se fazer captação. Mesmo as empresas que estão menos expostas sofrem, porque você tem a indicação de que existe algo negativo acontecendo. Por isso, a volta da liquidez é tão importante. Não dá para se congelar nesse nível de fevereiro, quando ninguém conseguiu emitir nada. A postergação disso por alguns meses terá consequências muito ruins sobre o rating de diversas empresas. E a dívida não espera, a data de pagamento chega. Não acho que vamos retomar o nível que vimos antes dessa freada. Vai ser um retorno gradual, seletivo, onde as melhores empresas vão dar início à recuperação.