Governança 2.0: Americanas e o Surrealismo Corporativo

Ausência de atas do Comitê de Auditoria é algo "totalmente desrespeitoso"

Tânia Rego/Agência Brasil
Tânia Rego/Agência Brasil

Desde o início de minha carreira tenho a convicção de que algumas empresas, além de terem um modelo de gestão inspirado em Taylor & Fayol, possuem um fetiche por André Breton, escritor francês que lançou ao mundo artístico um novo movimento. As suas bases estão descritas no Manifesto Surrealista, lançado em Paris em 1924, que trouxe para o mundo um novo modo de encarar a arte. Segundo ele, o conceito consiste em:

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.

O contexto do movimento era claro: período entre as duas guerras mundiais, onde frente à incerteza de paz, muitos desejavam viver apenas o presente, sem muita preocupação com as consequências. To make a long story short: “vivendo la vida loca”.

Em inúmeras oportunidades na vida executiva eu tive a certeza de estar no meio deste movimento, vendo elefantes voadores coloridos tocando trombetas, saídos de um filme de Fellini. Certo que meus 30 anos de vida executiva foram um prato cheio para isso, dado que se iniciaram na década de 90, onde o pessoal fumava em salas de reunião e assédios morais e sexuais eram tratados com uma certa indiferença e normalidade. 

Entretanto, o caso Americanas certamente tomará lugar de destaque destas minhas memórias com um fato trazido pelo jornal Valor Econômico de 03/07/23, com o seguinte título:

Americanas diz a administrador judicial que não tem atas do comitê de auditoria

Alguns adjetivos me vêm à cabeça: previsível, inaceitável, risível e jocoso, entre outros. Sim, no mínimo totalmente desrespeitoso para com o acionista minoritário.

Vou explicar.

A leitura da matéria mostra que a empresa diz que a elaboração de ata não era obrigatória. Entretanto, seu site de RI diz que documentar em ata é uma prática a ser seguida. Isso é no mínimo inconsistente. 

Ops, mais uma vez a palavra “inconsistência” aparece por aqui…

Adicionalmente, dada a sua importância, a reunião do comitê de auditoria precisa ser realizada, pois ali devem ser registrados os principais pontos de discussão com o auditor externo. Esta ata também deve ser enviada formalmente ao presidente do CA para que tenha ciência dos fatos discutidos. E tudo isso faz base para o relatório de auditoria, sendo que os principais pontos são descritos ao público externo na seção de PAA – Principais Pontos de Auditoria no relatório elaborado e assinado pela auditoria externa. 

Vamos aos fatos: não há atas, portanto não há documento oficial que comprove eventual ciência do comitê sobre o risco sacado. Também não há ciência dada pelo comitê ao presidente do CA. Não há também documento dele que requisite estas atas formalmente ao comitê de auditoria. Não há menção sobre risco sacado no relatório das auditorias.

Ironicamente falando, todas estas faltas não são um pouco estranhas? 

Não sei porque, mas me vem à mente a máxima de que “não há crime sem cadáver”. Será? O Goleiro Bruno foi julgado e declarado culpado pelo assassinato de Eliza Samudio sem que o cadáver fosse encontrado. Então isso dificulta, mas não elimina o risco.

Tenho sempre batido na tecla que uma boa governança precisa garantir que os riscos sejam identificados, subam pela hierarquia, sejam discutidos internamente nas instâncias adequadas (CA precisa analisar e aprovar Matriz de Risco e Materialidade e não apenas ficar olhando P&L, M&A e discutir sexo dos anjos) e ações de mitigação sejam definidas, executadas e monitoradas. Muitas vezes isso não acontece, ou por incompetência ou por acordos tácitos nada incomuns em muitas organizações. 

O registro de tudo isso tem o poder de mostrar que não se quer esconder nada de ninguém. Transparência é o nome do jogo para quem quer ter uma boa governança na empresa. Isso protege o CNPJ, o CPF dos executivos, os acionistas e stakeholders de um modo geral. 

Falando em CPF, vale lembrar que um bom D&O não resolve tudo. Crime ambiental no Brasil, por exemplo, é inafiançável. E a corda sempre estoura do lado mais fraco.

Você está confiante que sua empresa e seu CPF estão protegidos por uma boa governança da sua empresa?

A minha máxima é a seguinte: better safe than sorry.