Por Giovanna Tegani*
Nos últimos dias, o país se comoveu com a situação de saúde do apresentador Faustão, que está na fila do transplante de coração, precisando receber o órgão com certa urgência. O apresentador aguarda o recebimento do coração na fila de transplante do SUS (Sistema Único de Saúde).
Paralelamente ao acontecido, tivemos as prévias das eleições presidenciais argentinas, que apontaram o polêmico candidato Javier Milei, filiado ao partido La Libertad Avanza, como a opção que seria eleita no cenário atual do país. Mas o que tem Milei a ver com o drama de Faustão? É que, entre propostas excêntricas, Milei declara-se a favor da legalização da venda de órgãos.
Como alguém que possui certa propriedade no assunto, visto que, no ano passado, doei um rim para a minha irmã mais nova, vou tentar elucidar como funciona o sistema de transplantes no Brasil.
Justamente para evitar que ocorra o comércio de órgãos, que é ilegal, a fila para o transplante é única, e gerenciada pelo SUS. O órgão é recebido apenas pela equipe de saúde do SUS e direcionado ao primeiro candidato da fila. No entanto, a cirurgia não é feita exclusivamente pelo sistema gratuito de saúde. As administrações dos hospitais, incluídos os privados, farão uma triagem de fatores. Não necessariamente o primeiro da fila recebe de cara o primeiro órgão que chegar. São avaliadas minuciosamente a compatibilidade daquele órgão e, posteriormente, a existência de leitos disponíveis para a cirurgia.
Se o paciente for compatível com o órgão, mas for um paciente da gratuidade e nas próximas horas não existir a possibilidade de um leito disponível, é passado para o próximo da fila que tiver a possibilidade do leito – ou seja, provavelmente um paciente assistido por um plano de saúde ou que possa adquirir a cirurgia na modalidade particular de pagamento. Deste modo, o transplante já é mais rápido em pacientes com melhores condições financeiras, porém, segue uma certa “justiça” na fila.
Agora, analisando por um outro prisma. Existem países onde a comercialização de órgãos é permitida, como Filipinas, Irã e Índia – normalmente países com amplos problemas econômicos. Esses países comercializam órgãos dentro das próprias fronteiras, e, também, fortalecem o regime ilegal de comércio internacional de órgãos. Um relatório recente da Global Financial Integrity estima que o comércio ilegal de órgãos gere lucros entre $600 milhões e $1.2 bilhão por ano. Analisando esses valores, alguns podem olhar o assunto sob o ponto de vista exclusivo do lucro e concluir que a defesa do presidenciável argentino Milei a essa modalidade de “mercado” faz sentido. Nesse panorama, sim, o drama do Faustão poderia ser resolvido com uma boa quantidade de dinheiro, adquirindo um órgão compatível para si e transplantando com bastante agilidade.
Então, por que a maior parte das organizações internacionais é contra o mercado legalizado de órgãos? Explico. O comércio de órgãos é danoso às sociedades por uma gama de fatores. Com a mercantilização do corpo humano, temos a exploração da saúde de grupos pobres, minamos a doação altruísta e maximizamos os crimes relacionados a roubo de órgãos. Ou seja, não somente as classes mais baixas sofrem com isso, mas as classes mais altas também sentem o aumento da insegurança e violência.
E aí temos uma nova problemática: o comércio de órgãos afeta, principalmente, as crianças. Isso porque os órgãos mais jovens costumam estar em melhores condições de saúde. Porém, é uma prática extremamente perigosa, porque além dos riscos da cirurgia, também é difícil prever que aquela criança não desenvolverá condições de saúde adversas ao longo da vida. Logo, a longo prazo, existe um sufocamento do sistema de saúde para resolver as novas adversidades criadas em larga escala, o que acaba não justificando a “solução” como viável para a saúde pública.
No Brasil, existem leis que condenam veementemente a retirada, a compra e a venda de órgãos. No entanto, o termo “tráfico de órgãos” não existe como “tipo penal” específico, ou mesmo como agravante, no Direito Criminal brasileiro. Mas, como se sabe, as leis são sempre mutáveis. E, preferivelmente, para atender os desejos da nação…
E aí, qual a sua opinião sobre o assunto?
*As opiniões dos colunistas do FLJ não refletem o posicionamento do veículo