Coluna por Marcio Aith

O dólar está nu — e o real, invisível

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A moeda americana domina por falta de opção. A brasileira continua no exílio.

“Privilégio exorbitante.” Foi assim que Valéry Giscard d’Estaing, ministro das Finanças da França nos anos 1960, descreveu a capacidade única dos Estados Unidos de financiar déficits em sua própria moeda — e, ainda assim, ser premiado com confiança global. Enquanto o mundo precisava equilibrar contas, os EUA podiam se endividar à vontade. Bastava imprimir dólares. E o planeta comprava.

Mas algo nessa equação começou a trincar. O Financial Times cravou sem meias palavras: Donald Trump pode ser o coveiro do dólar. Ele próprio reconhece o risco — disse que perder o dólar como moeda mundial seria “como perder uma guerra”. O curioso é que a erosão da confiança na moeda americana é acelerada exatamente por ele: protecionismo, tarifas, sanções financeiras e uma política externa errática colocaram aliados em xeque e lançaram dúvidas sobre o compromisso dos EUA com a estabilidade global. Quem confia numa potência que faz guerra comercial com parceiros, ameaça invadir países amigos e transforma o dólar em arma geopolítica?

A hegemonia do dólar sempre dependeu menos da virtude americana e mais da ausência de alternativas confiáveis. E esse paradoxo está mais vivo do que nunca. O renminbi, embora represente a segunda maior economia do mundo, continua acorrentado por controles de capital e um sistema político que privilegia o controle sobre a confiança. O euro, por sua vez, sofre de um déficit de soberania: é uma moeda sem Estado. As moedas digitais, por enquanto, ainda são quimeras — amontoados de código que não carregam a confiança de nenhuma potência.

No reino das moedas cegas, o dólar míope continua rei. Mas o reino está inquieto. E a inquietação tem fundamento. O império que emite a moeda dominante do mundo carrega hoje níveis de endividamento incompatíveis com a ideia de solvência eterna. A dívida detida pelo público — ou seja, nas mãos de investidores e instituições financeiras, e não do próprio governo — já representa 98% do PIB americano. Na métrica bruta, o número sobe para 124%. E, no entanto, os EUA continuam a se financiar com juros reais próximos de zero.

Scott Bessent, secretário do Tesouro americano, tentou acalmar os mercados: “Os Estados Unidos da América jamais darão calote. Isso nunca vai acontecer.” A imagem usada por ele não ajudou muito: “Estamos na pista de advertência, mas nunca vamos bater no muro.” A frase parece feita sob medida para acentuar o medo — e não o contrário.

É aí que o contraste com o Brasil salta aos olhos. A dívida mobiliária federal brasileira em mercado, métrica mais próxima da debt held by the public americana, está em torno de 53% do PIB. Na conta bruta, somando o que o Tesouro deve ao próprio setor público, a dívida brasileira atinge 76,1% do PIB. São números fiscalmente mais moderados do que os dos EUA — e, ainda assim, o Brasil paga os juros reais mais altos do planeta, frequentemente acima de 6%.

Ou seja: o investidor global prefere financiar quase o dobro da renda anual dos EUA, mesmo com os fundamentos fiscais do país em ruínas, do que se arriscar no Brasil com a metade disso.
Na prática: o Brasil paga caro para ser ignorado, enquanto os EUA são premiados para serem temidos.

A assimetria revela o que de fato está em jogo. O mercado mundial confia no dólar, mesmo quando desconfia dos Estados Unidos. E desconfia do Brasil, mesmo quando os números parecem mais arrumados. O dólar tem lastro institucional, militar e financeiro. O real carrega memória inflacionária, volatilidade política e um histórico de improvisação fiscal. Ninguém quer acumular reais. Nenhum banco central diversifica reservas comprando títulos brasileiros. Enquanto o dólar perde aura, o real nunca teve.

E, mesmo assim, Donald Trump está nervoso. Durante um comício recente, escancarou o medo de ver o dólar substituído por uma nova moeda criada pelos Brics. Não se trata apenas de retórica eleitoreira. A preocupação é real. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul discutem abertamente a possibilidade de criar uma moeda comum para transações internacionais — e, no horizonte, como reserva global alternativa ao dólar. A proposta ainda é incipiente, mas não é mais uma teoria conspiratória. É projeto geopolítico.

Trump, com seu instinto de sobrevivência, sabe que moeda de reserva não é só um arranjo técnico — é uma escolha política. Charles Kindleberger — economista americano e autor da tese da “hegemonia benevolente”, influente no pós-guerra — já havia dito que o mundo precisa de uma potência disposta a prover três bens públicos globais: comércio aberto, moeda estável e resgate em crises. A Inglaterra sustentou esse papel até 1914. Os EUA assumiram em 1945. No vácuo entre essas duas hegemonias, o mundo mergulhou na desordem da década de 1930. Hoje, voltamos a flertar com esse vácuo. Os EUA ainda exercem a liderança — mas de forma cada vez mais errática, egocêntrica e punitiva. E ninguém parece disposto ou capaz de substituí-los.

O resultado é um cenário de ceticismo estrutural. A confiança global no dólar está sendo corroída, mas não deslocada. As alternativas têm muitos defeitos e pouca massa crítica. O que se desenha é uma hegemonia rachada, mas ainda dominante.

Em outras palavras: mesmo desacreditado, o dólar continua sendo mais confiável do que o Brasil inteiro.