Por: Lucinda Pinto
O arcabouço fiscal trouxe boas surpresas ao demonstrar a preocupação do governo com a geração de superávit primário e a evolução da dívida. Mas para o chefe da Central de Estudos Monetários do FGV/IBRE e ex-diretor do Banco Central, José Julio Senna, o que vai determinar se o conjunto de regras abrirá caminho para um corte de juros é a reação que o mercado – e as expectativas traçadas pelos agentes – vai demonstrar ao longo das próximas semana.
Em entrevista exclusiva à Mover, Senna afirmou que o BC precisa continuar respeitando os protocolos da política monetária e esperar que as medidas fiscais produzam efeito sobre as expectativas de inflação. “Na hora em que a percepção do mercado de desequilíbrio melhorar, a expectativa de inflação da Focus tende a cair, as projeções vão caminhar para a meta. Aí os juros vão cair”, afirmou.
Segundo Senna, por ora, as projeções de inflação acima da meta e o juro real acima de 6% pago pelas Notas do Tesouro Nacional-Série B (NTN-Bs) – títulos públicos indexados ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) – impedem que o BC aponte para um alívio monetário. Olhando para o exterior, a perspectiva de que o Federal Reserve também mantenha um juro real mais elevado é outro fator que limita o espaço para corte de juros no Brasil.
Diante do cenário de atenção dos bancos centrais do mundo todo com a inflação, o economista considera inapropriada a discussão sobre uma mudança nas metas do indicador. E lembra que, no passado, ter um alvo mais flexível não viabilizou juros tão mais baixos: entre 2005 e 2018, quando a meta de inflação era de 4,5%, a o IPCA ficou, em média, em 5,5% ao ano, e o juro real em 6,6% em média. “De onde veio a história de que meta mais alta é mais fácil de cumprir?”, questionou.
Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Mover: O arcabouço fiscal divulgado é suficiente para abrir espaço para o corte de juros?
Senna: O programa surpreendeu positivamente porque reflete a preocupação do governo com as contas públicas, com a dívida, com a geração de superávit. Há aspectos favoráveis, mas tem uma deficiência básica que é ser todo pautado em cima do aumento expressivo das receitas. E receita tributária é uma variável que o governo não controla. Lá atrás, partiu-se para o Teto de Gastos porque o governo só tem controle sobre as despesas. E como se prevê um crescimento mínimo de gastos reais, a receita tem que crescer persistentemente, o que não é algo garantido. Então, o efeito que esse arcabouço vai ter sobre a política monetária vai depender da reação dos participantes do mercado ao longo do tempo. A primeira reação foi positiva, mas apenas alguns dias não são suficientes para a gente saber. Isso porque a ficha vai caindo aos poucos, a confiança ou não no cumprimento do prometido virá devagarzinho. O programa ainda será discutido, e talvez modificado, no Congresso. Então tem muita água para passar por debaixo da ponte. Será difícil saber nas primeiras semanas qual impacto esse arcabouço vai ter sobre a política monetária.
Mover: A pressão que o governo tem feito sobre o BC para cortar os juros faz parte do jogo, quando se tem um BC autônomo, ou estamos vendo algo acima do tom?
Senna: Eu não vejo esse tipo de pressão em outros países. Em particular, nos Estados Unidos, cujos eventos são acompanhados muito de perto, é justamente o contrário. O Fed já nasceu independente, e a administração federal evita qualquer interferência. Aqui, então, está um pouco acima do tom, mas era um pouco previsível que fosse assim. A gente percebeu, logo que o novo governo foi eleito, o apetite por mais gastos. E ficou muito claro que o governo tem pressa. Essa é uma característica da administração atual, que está se revelando com muita pressa, seca por conseguir logo bons resultados. Eu compreendo isso. A polarização política está muito acirrada, o quadro econômico inspira bastante cuidado, a atividade econômica e o emprego tendem a piorar daqui para frente. Dá uma agonia para os administradores que estão no poder. A eleição foi ganha com margem estreita de votos. Quanto mais cedo conseguir “mostrar serviço”, ter um bom desempenho, impulsionar a economia, melhor. Mas para quem tem pressa, a questão de retomada de crescimento econômico acaba ficando muito dependente de gasto público, da política fiscal, o que conflita um pouco com a boa teoria econômica. Mesmo que o fiscal consiga dar um impulso para a economia, ele não é sustentável. Impulso para economia dado por injeção fiscal não se sustenta no tempo, então não é um bom caminho. Mas estava claro que haveria insistência por mais gastos e que haveria um conflito: a administração querendo mostrar resultado logo, e o nível elevado dos juros reais dificulta a retomada da economia. Mas eu não imaginava que teria essa dimensão, a ponto de integrantes do governo estarem super mobilizados para criticar o trabalho do BC. Eu acho que está fora de tom.
Mover: A mensagem mais dura que o BC adotou nas últimas comunicações pode ser, em parte, uma forma de resistir a essa pressão?
Senna: O BC está seguindo o protocolo que diz que, nas circunstâncias atuais, ele não poderia em hipótese alguma fazer algo diferente. A política fiscal, no mundo inteiro, é administrada por políticos. Tributos, gastos, alocação do dinheiro público, orçamentos… quem faz em todas as esferas de governo o comando está nas mãos dos políticos. Já os bancos centrais, no mundo inteiro, são administrados por técnicos. O aspecto fundamental é: desobedecer a esses protocolos tem um custo muito alto. Qual é o preço? Piorar tudo. Você não resolve, e agrava o problema. E tem outra coisa, no mundo inteiro, existem os ‘watchers’ [observadores], empenhados em entender o que o banco central está fazendo. Se ele toma uma decisão sem uma razão muito clara, a credibilidade se perde. E confiança que se perde é difícil recuperar.
Mover: O que diz o protocolo neste momento?
Senna: As expectativas de inflação, a principal variável no modelo do BC, estão em alta. Além disso, o juro real das NTN-Bs tem oscilado entre 6% e 6,5%. Há dois anos, estava em 4%. A variável-chave que influencia a NTN-B é o prêmio de risco, que é determinado pelo fiscal. Como o BC vai comunicar que está vendo algo bom, se o juro da NTN-B está em 6%? Ao se colocar contra o protocolo, eventualmente, a punição vai ser muito severa, vai ter um prejuízo muito grande para a sociedade. Então, acho que o BC vai seguir pilotando a política monetária de acordo com os protocolos. Na hora em que a percepção do mercado de desequilíbrio melhorar, a expectativa de inflação da Focus tende a cair, as projeções vão caminhar para a meta. Aí os juros vão cair.
Mover: O esfriamento do mercado de crédito, aqui e no exterior, não vai influenciar essa decisão?
Senna: A política monetária está apertada desde o último trimestre de 2021. Então, não é nenhuma surpresa que o crédito seja afetado. E sobre o episódio bancário lá fora, não vejo como ele possa nos afetar. Há décadas, a regulação bancária no Brasil é seguida muito a ferro e fogo. Nosso sistema está muito saudável. Mas isso não quer dizer que o crédito não vá continuar sofrendo, por causa da política monetária e do episódio da Americanas. É importante observar que a turbulência no sistema bancário americano veio em um momento em que o Fed está combatendo a inflação. E ele não pode olhar só para a turbulência financeira, senão a inflação volta. Então, existe a possibilidade de o juro real nos EUA ficar elevado, e isso é um fator importante para o Brasil porque, de certa forma, esse juro real americano condiciona a política monetária no Brasil, teremos menos espaço para reduzir os juros. Então, de certa forma, o que está acontecendo lá fora está sendo levado em conta.
Mover: Nesse contexto, faz sentido discutir uma mudança da meta de inflação?
Senna: Tivemos meta de inflação de 4,5% por 14 anos, de 2005 a 2018. Nesse período, a média da inflação foi de 5,55%. Não foi moleza cumprir os 4,5%. E o juro real ficou em 6,6% em média, sendo que hoje está perto de 8%. Os juros das NTN-Bs, que hoje estão entre 6% e 6,5%, eram perto de 6,20%. De onde veio a história de que meta mais alta é mais fácil de cumprir? Além disso, trouxeram a discussão na hora errada. Estamos todos em guerra contra a inflação: nós, o Reino Unido, o Canadá… Não faz sentido a gente mudar a meta no meio da guerra.
Mover: Na substituição de diretores do BC, a perspectiva de que os nomes escolhidos sejam de uma escola diferente da diretoria atual é algo preocupante?
Senna: Nos EUA, quem indica os sete membros do board do Federal Reserve é o presidente. Lá, há uma clara divisão entre democratas e republicamos e, normalmente, o presidente indica nomes ligados ao seu partido. Mas houve exceções, como o Ben Bernanke, que era republicano e foi indicado pelo [Barack] Obama, democrata. Da mesma forma, Alan Greenspan foi indicado pelo [Ronald] Reagan, republicano, e reencaminhado pelo [Bill] Clinton, democrata. E volta e meia são indicadas pessoas que vão se reunir aos membros que já estão lá, com tendência política distinta. E o presidente do BC que está no poder não opina nada sobre quem vai vir. A questão é que, nos EUA, as diferenças em termos de linha de pensamento econômico, de como se enxerga os protocolos dos BCs, são muito pequenas. E lá, quando se faz algo muito radical nos EUA, o Senado veta. Acho que pessoas de formação e tendência política diferentes podem perfeitamente conviver. Mas se as diferenças de pensamento forem muito grandes, aí fica complicado. É fundamental que os dirigentes do BC passem confiança de que irão cumprir os protocolos. Se não houver consenso sobre que protocolos serão cumpridos, a autoridade monetária perde credibilidade.